O mundo é um terreiro

Psicóloga de jovens infratores, Sandrali Bueno vê na religião o religar à humanidade das pessoas

Guilherme Henrique Colaboração para Ecoa, de São Paulo Carlos Macedo/UOL

Aos 72 anos, a psicóloga Sandrali de Campos Bueno não pensa em diminuir o ritmo, mesmo após quadro décadas recorrendo aos princípios dos cultos de matriz africana para lutar pela igualdade racial, da política à religião, passando pela cultura.

Mãe de santo da Comunidade de Terreiro Sociedade Afrobrasileira "Ìlé Àiyé Orishá Yemanjá", em Pelotas (RS), Iyá Sandrali defende o estado laico como princípio da democracia. E vê que apenas a igualdade de condições pode fazer do Brasil uma nação.

Religião não é só se religar ao sagrado, mas à humanidade das pessoas

Enquanto isso, ela equilibra o trabalho junto a adolescentes em conflito com a lei e as atuações nos movimentos negro e de preservação de religiões afrobrasileiras. Soma-se a isso a vida política, do PDT ao PT, partido ao qual é filiada desde o início dos anos 1990 e dentro do qual luta pela maior inserção de pessoas negras.

Sem tempo a perder, Sandrali não acha que seja utopia o fim do racismo no Brasil. "Se eu pensasse assim, minha luta não valeria a pena", justifica. Mas enfatiza que isso é percorrer parte do caminho. O restante deve ser trilhado por outras pessoas.

Não fomos nós [negros] que criamos o racismo. Eles [brancos] precisam lidar com isso. E quem se diz antirracista precisa o ser radicalmente, sem meio-termo. Eles precisam ser nossos escudos

A vida como um cesto

Deborah Faleiros/UOL

Sandrali enxerga a própria vida como um grande cesto, em que deposita as respostas de que precisa para viver. No que diz respeito ao racismo, as dores estão no fundo desse grande baú há muito tempo. "Com 5, 6 anos, estudei em colégio de freira. Minha mãe sempre fez questão que eu me vestisse da melhor maneira possível para nossas condições. Usava meia de seda, o que não era comum. E na escola eu ouvia das outras meninas, 'Como essa negrinha usa meia de seda e eu não?'. Era algo cruel", relata.

A infância em Porto Alegre nos anos 1950 e meados da década seguinte no que hoje é o bairro Mont'Serrat era como "viver em um quilombo". "As crianças eram de todo mundo, havia muita coletividade com tios e primos", diz. Hoje, o bairro tem outra cara e se tornou um dos mais caros da capital gaúcha.

Aos 12 anos, Sandrali foi para Novo Hamburgo, na região metropolitana de Porto Alegre, porque o pai, treinador de jogadores de futebol de categorias de base, conseguiu trabalho em um clube da cidade. Vieram do seio familiar mais lições para o cesto. "Meu pai sempre foi mais sonhador. Já minha mãe é mais prática, pé no chão. Herdei um pouco dos dois para me equilibrar na mulher que me tornei."

A matriarca da família, Dona Tuli, aos 91 anos continua dando as diretrizes. "E ai de quem não seguir", brinca Iyá Sandrali, ressaltando que a influência da mãe se estende à criação das suas duas filhas: a ativista e pesquisadora Winnie Bueno e a psicóloga Ayanna Bueno; além da neta, Virginia, de 7 anos.

A gente vai transformando adversidade em aprendizado ao longo da vida, mas esse é um processo que não tem fim, porque o caminho para uma mulher negra e macumbeira, no sul do Brasil, nunca será fácil

Sandrali de Campos Bueno, psicóloga e líder religiosa

Poder silencioso

Deborah Faleiros/UOL

Nos anos 1970, Iyá Sandrali começou a trabalhar na antiga Febem (Fundação Estadual do Bem-estar do Menor), em Porto Alegre, para onde a família voltou. Nos últimos 50 anos, a instituição, que já mudou de nome várias vezes, tem sido seu único emprego. Lá, foi instrutora de artes, auxiliar técnica, coordenadora de atividades, diretora e psicóloga.

Foi do trabalho com jovens em conflito com a lei que nasceu a ideia de cursar psicologia. Após a graduação na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, especializou-se em criminologia na PUC-RS.

Um dos jovens infratores enviou uma carta em que dizia que sua "cabeça já não funcionava mais", tamanho era o confinamento a que estava submetido. "Fiquei refletindo sobre aquilo e decidi estudar o confinamento como 'o silencioso poder de punir'", lembra. Virou o trabalho de conclusão do curso.

Sandrali também trabalhou com meninos e meninas em vulnerabilidade social e pessoal no Albergue "Ingá Britta", que dirigiu no fim da década de 1980. "Tudo mudou. As instituições mudaram, e o tipo de crime cometido também. Antes havia predominância de roubo e do abandono. Hoje o que predomina é o consumo ou tráfico de drogas, sobretudo o homicídio associado ao tráfico", analisa.

A política como consequência

Deborah Faleiros/UOL

Os confrontos diários com as angústias dos jovens da Febem levaram Sandrali para a militância. Em 1985, em um discurso de improviso nas proximidades da Igreja São José, região central de Porto Alegre, ela falou sobre o abandono de crianças negras. Chamou a atenção de Carlos Araújo (1938-2017), um dos fundadores do PDT.

A proximidade do futuro deputado estadual e ex-marido de Dilma Rousseff (PT) a fez integrar o grupo de negros do PDT, que também realizava mutirões de assistência social pela capital gaúcha.

No início dos anos 1990, a ativista filiou-se ao PT. Tentou se eleger sem sucesso deputada estadual no RS, vereadora e vice-prefeita em Pelotas.

No partido, a ativista é uma das líderes do coletivo NegrAtividade, que reúne negros e negras em torno do gabinete da deputada federal Maria do Rosário e disputa por mais espaço e poder dentro da legenda. Além disso, ela é parte da Executiva Municipal petista em Pelotas.

Para ela, a política partidária é um caminho possível para mudar a sociedade. Não sem adversidades.

Há uma elite branca do partido que quer dizer como os negros devem se organizar. Não podemos esquecer que os partidos são instâncias da sociedade, que é machista e racista. É ilusório achar que não acontece na política, mesmo na esquerda (...) Tudo bem, faz parte. Só que tem uma coisa: a esquerda me maltrata, mas a direita me mata

Sandrali de Campos Bueno, psicóloga e líder religiosa

O mundo como espelho do terreiro

Deborah Faleiros/UOL
Carlos Macedo/UOL

A militância de Sandrali também é marcada pelo diálogo entre movimentos da sociedade civil e o poder público. O fio condutor dessa atuação está ancorado nos preceitos do batuque, onde foi iniciada na década de 1970 por Enio Souza Conceição, o Pai de Oxum Pandá Miuwá.

"As culturas que vieram para o Brasil se amalgamaram na diáspora para se transformar nessa Teogonia [do grego, nascimento de deuses], que cultuamos como sagrado e está preservada em terreiros e quilombos. Precisamos é trazer isso para a arena pública e defender os terreiros como instâncias do saber e de forma de vida", explica.

No Rio Grande do Sul, terreiro é mais do que apenas um ambiente do sagrado. Por um lado, o estado tem um dos menores percentuais de negros do Brasil. Por outro, tem um dos maiores percentuais de praticantes de religião de matriz africana, de acordo com os Censos de 2000 e 2010, o último feito no país.

Para preservar essa tradição, Sandrali participou da criação do CPTERS (Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul), em junho de 2014, na gestão do governador Tarso Genro (PT). Entre 2014 e 2018, foi a primeira secretaria-executiva da instituição criada para desenvolver ações e propor medidas políticas em prol do povo de terreiro.

A partir do conselho estadual, órgãos municipais também foram criados. O de Pelotas, por exemplo, tem Sandrali como secretária-geral.

Não vamos ser algo folclorizado, que só apareça de indumentária em ato solene (...) A gente está falando de um estado com muitos terreiros, mas extremamente racista. Nos Conselhos de Terreiro, ficamos em contato com Polícia Civil, Ministério Público e Defensoria Pública, para averiguar, por exemplo, casos de intolerância religiosa (...) É um instrumento de controle social

Sandrali de Campos Bueno, psicóloga e líder religiosa

O respeito ao sagrado e a força das mulheres

Deborah Faleiros/UOL

Sandrali é ainda uma das coordenadoras da Renafro (Rede Nacional de Religiões Afrobrasileiras e Saúde), uma das organizações que pressionaram para criação das Delegacias de Combate à Intolerância Religiosa, hoje presentes em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

A entidade nasceu para utilizar os saberes dos terreiros em diálogo com o SUS. Por lá, ela lidera o grupo de trabalho 'Mulheres de Axé', do núcleo no RS, que desenvolve cursos de formação política, seminários e projetos de política pública. "Para mim, a revolução começa, acontece e termina na centralidade da mulher negra. E isso não é de agora", diz., no

O diálogo ocorre também fora do terreiro. No Fórum Inter-Religioso e Ecumênico pela Democracia do Rio Grande do Sul, a conversa entre Sandrali e outros líderes religiosos é sobre como fortalecer uma sociedade menos discriminatória.

A mãe de santo branca vai sofrer preconceito não por ser branca, mas porque pratica uma religião de preto. É preciso que sacerdotes de todas as matrizes estejam cada vez mais prontos para defender em suas religiões uma atitude antirracista, antissexista, anti-homofóbica. Religião não é só se religar ao sagrado, mas à humanidade das pessoas. Isso é fundamental na preservação da democracia

Incansável, Sandrali ainda arranjou tempo e disposição para se filiar ao MNU (Movimento Negro Unificado), em 2018, para assumir um cargo de coordenação da entidade no Rio Grande do Sul. "Existe um antes e depois do MNU. Todas as organizações beberam dessa fonte, e fazer parte disso é importante", comenta. "Mas é um trabalho adicional", brinca. E acrescenta: diante da realidade do Brasil, não há agenda cheia que não possa comportar mais um compromisso.

Enquanto o Brasil seguir matando e discriminando negros como faz, não pode ser chamado de nação. E enquanto ele não puder ser chamado de nação, tenho trabalho a fazer

Sandrali de Campos Bueno, psicóloga e líder religiosa

CABEÇAS NEGRAS

Deborah Faleiros/UOL

Quem são as pessoas que colaboraram para a formação da consciência negra no Brasil? Criado há 10 anos, o Dia da Consciência Negra tem se consolidado como um momento de combate ao racismo e também de valorização da cultura afro-brasileira. De personalidades do cenário nacional e internacional a nomes que ficaram de fora dos holofotes, fato é que muita gente colaborou para a construção não só da data, mas para a vivência da consciência negra na prática.

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