Voltar a ser gente

Filósofo Wanderson Flor usa bioética para flagrar desumanização de corpos negros -- e como reverter isso

Guilherme Henrique Colaboração para Ecoa, de São Paulo Pryscilla K./UOL

Wanderson Flor do Nascimento sempre quis ser professor. Diz isso com fala pausada e olhar sereno, repousando em uma cadeira de couro em um dos cômodos de sua casa. Rodeado de estantes e livros, conta que decidiu isso ainda criança, no terreiro de Osasco (SP) onde atuava sua avó materna. "É uma forma de retribuir à sociedade aquilo que aprendemos ao longo da vida", sintetiza.

A decisão foi seguida à risca. O hoje professor da UnB (Universidade de Brasília) dedicou a vida aos estudos. Mestre em filosofia e doutor em bioética, é dele a primeira tese da área no Brasil.

"Corpos negros morrendo aos montes na pandemia é uma discussão que passa pela bioética. Por que negros morrem mais? De que maneira? Toda e qualquer pesquisa que envolva seres humanos precisa ser aprovada por um comitê. Uso de vacinas, remédios, tudo. A bioética serve para que respeito e ética sejam os balizadores dos avanços nas áreas da saúde e da ciência", explica.

Nas aulas sobre a cultura negra, cidadania e direitos humanos, Wanderson está humanizando corpos negros por meio do conhecimento, que serve para mudar o futuro, mas também reinterpretar o passado.

Um pouco da nossa tarefa enquanto educador é questionar o que está posto e recuperar a história e a produção de pessoas apagadas sistematicamente pelo colonizador, de intelectuais como Luiz Gama, Lima Barreto e Machado de Assis a Carolina Maria de Jesus. A produção brasileira sempre foi atravessada pela potência negra, e a população precisa saber disso.

Do terreiro para o mundo

Deborah Faleiros/UOL

Filho de mãe pernambucana e pai piauiense, o professor recebeu os primeiros ensinamentos de uma família que perambulou por vários cantos, como São Paulo, mas se estabeleceu no leste do Gama, região administrativa no Distrito Federal, para trabalhar na construção civil no início da década de 1950.

Da avó materna, a pernambucana Maria Acelina, mãe de santo no terreiro Nzo ria Ndandalunda, Wanderson aprendeu que a pele mais clara poderia atenuar a violência contra ele, mas nem por isso ele estaria a salvo da discriminação.

Entre uma lição e outra, diz, o professor de filosofia foi aprendendo o que era pertencer a uma comunidade de resistência, liderada por uma mulher que, mesmo atravessada pelo racismo e machismo, criou em torno de si um modo de vida baseado na troca de conhecimentos sem opressão.

Com ela, Wanderson compreendeu que teria de defender essa vivência da intolerância religiosa. É o que ele faz no CEN (Coletivo de Entidades Negras) e na Renafro (Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde), que fazem, respectivamente, mobilizações junto ao poder público para conter atos de violência contra religiões de matriz afro-brasileira e defesas da maior participação do povo de terreiro em estratégias de prevenção e acolhimento em saúde.

As pessoas pensam no terreiro como lugar de crença, fé, religioso. Mas não é só isso. Acreditam ser um espaço de misticismo, mágico, mas, para mim, é o cotidiano. Oxum é água, Exu é encruzilhada, Ogum é estrada e Iansã é o vento. É uma mitologia que ajuda na vida cotidiana. Tem uma noção de vivência, de comunhão, que nos dá uma diretriz para enfrentar o mundo

Wanderson Flor, professor da UnB

Marconi Cristino Marconi Cristino

Brasília: insurreições nas franjas da capital

Deborah Faleiros/UOL

Quando recorda a transição da infância para a adolescência no centro do poder, Wanderson só lembra de uma coisa: "Eu não tinha medo de bandido, mas dos militares que estavam nas ruas". "Nos últimos dias do governo João Figueiredo, havia uma tentativa mínima de manter um sujeito fracassado no poder. Já se sabia que os militares estavam de saída, mas havia um temor no ar", recorda.

Naquela época, o Distrito Federal vivia suas "insurreições particulares", como conta Wanderson. Não havia um único movimento de contestação ao racismo e à desigualdade social, tampouco elas trabalhavam em conjunto nas várias cidades satélites de Brasília.

No Gama, onde cresci e vivo ainda hoje, e em Planaltina, sempre houve uma cena forte do rock negro norte-americano. Tinha uma galera que ouvia muito rock e se chamava Panteras Negras e se contrapunha ao rock de classe média, feito nas garagens das casas do Plano Piloto [como o Legião Urbana].

Textos e artigos sobre a atuação de líderes norte-americanos na luta contra o racismo, como Malcolm X (1925-1965), Martin Luther King (1929-1968) e Angela Davis, 77, faziam a cabeça da banda, municiada por Nelson Inocêncio, futura referência do movimento negro na capital e professor da mesma instituição. Já na Ceilândia, o papo era outro. Uma incipiente cena do rap dominava o som, liderada por Genival Oliveira Gonçalves, mais tarde conhecido como GOG.

Entre o rap e o rock, o professor ficava mesmo era com a música nordestina, de Luiz Gonzaga a Genival Lacerda, desembocando nos repentistas migrantes do Nordeste. Para ele, a cena cultural serviu de esteio para o movimento negro em Brasília. "Eram lugares formados em grande maioria de pessoas negras, mas que não chamavam aqueles espaços de movimento negro", diz. Ainda assim, deram o recado antes de qualquer grupo organizado.

Kelly Brown Kelly Brown

Ser ponte entre os saberes

Deborah Faleiros/UOL

Wanderson costuma dizer que sua intenção enquanto pesquisador é ser uma ponte entre os saberes do terreiro, do seio familiar e da educação formal, sem que um dos lados tenha predominância.

Depois de a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ser alterada em 2003 para determinar a presença nos ensinos fundamental e médio de conteúdos de história e cultura africana e afro-brasileira, ele criou em 2013 um site em que reúne mais de cem textos sobre filosofia africana.

Ao longo dos anos, notei a pequena quantidade de materiais disponíveis em língua portuguesa sobre o tema e a dificuldade de localizá-los. Essa é uma forma de espalhar conhecimento e de subsidiar o trabalho docente.

Diferente das gerações anteriores que se depararam apenas com autores europeus no curso de filosofia, Wanderson teve contato com intelectuais negros ainda na graduação no fim dos anos 1990, como o antropólogo congolês Kabengele Munanga, a pedagoga Maria Gloria Moura e a escritora e ex-reitora da Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira) Nilma Lino Gomes.

A criação do NEAB (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros), em 1986, preparou o terreno para a universidade ser mais acolhedora. O resto foi feito pelos cursos promovidos pela antropóloga e especialista em culturas tradicionais Maria Lúcia Montes ( 1942-2018) e as visitas com Glória Moura a quilombos do Centro-Oeste para estudar a cultura das festas. Este e outros núcleos o ajudaram a tomar contato com outras realidades acadêmicas.

"São grupos e cursos que abordam as temáticas afro-brasileiras entre raça e gênero e tem afetado a universidade inteira. Já tive alunos de cursos que extrapolam a filosofia, da enfermagem e medicina à engenharia e ciências sociais. Há uma demanda, inclusive de estudantes brancos, que talvez queiram fazer um mea culpa histórico e mudar o país em que vivemos", conta.

A bioética da intervenção

Deborah Faleiros/UOL

Assim que terminou o mestrado em 2003, Wanderson não emendou no doutorado. "Não tinha bioética na UnB, então decidi esperar", explica. O contato com o tema surgiu anos antes em um curso sobre filosofia chinesa, que tratava de questões sobre ciência e saúde. A partir daí, queria em sua tese tratar da bioética, colonialidade e o impacto sobre a população negra.

Enquanto a colonialidade é o modo como colonizadores, sobretudo na América Latina, criaram um regime de poder sobre outros povos, fundado em padrões econômicos, políticos, culturais e morais, a bioética estuda os conflitos morais implicados nas práticas sociais, a partir de um sistema de valores.

Ao concatenar os dois conceitos, Wanderson propõe que o uso das teorias decoloniais seja incorporado às bases conceituais da Bioética da Intervenção, que encara questões morais com um conjunto de valores mais adequado à exclusão enfrentada por países do hemisfério sul, sobretudo os latino-americanos.

Para Wanderson, a bioética da intervenção é também uma denúncia da "hierarquização política da gestão da vida" entre "vidas desenvolvidas e não desenvolvidas". Uma consequência é países desenvolvidos sujeitarem nações mais pobres a práticas controversas na saúde e ciência.

"Todos vimos as inúmeras tentativas de utilizar o continente africano como cobaias das vacinas contra a covid quando não se tinha certeza de sua eficácia e de possíveis riscos", diz o professor.

A desumanização do negro

Deborah Faleiros/UOL

O professor se dedica a estudar o que chama de "metafísica do racismo", um conjunto de práticas e valores que moldam a imagem de um grupo social e o transforma em realidade. Assim, corpos inferiorizados são empurrados para a brutalidade social, e a corpos marcados como positivos são reservadas as ações racionais.

Para Wanderson, o Brasil atual usa da metafísica do racismo para desumanizar corpos negros. "Tudo é consequência disso: a violência, a exploração e o genocídio. O corpo de uma mulher negra foi arrastado por um carro de polícia em uma das maiores cidades do mundo e ninguém se lembra disso", diz ele, citando o caso de Cláudia Silva Ferreira, que teve o corpo arrastado por 350 metros por veículo oficial da Polícia Militar no Rio de Janeiro em 2014.

A tese encontra similaridade na ideia que o psicanalista nascido na Martinica Frantz Fanon (1925-1961) concebeu como a "zona do não ser", uma região social árida e desprovida de qualquer humanidade.

Só uma guerra nos impede de continuar nessa zona desumanizada. Milhares de vidas negras são assassinadas e ninguém se comove. Não é sentando e pedindo amor que vamos resolver isso. É no enfrentamento

Wanderson Flor, professor da UnB

CABEÇAS NEGRAS

Deborah Faleiros/UOL

Quem são as pessoas que colaboraram para a formação da consciência negra no Brasil? Criado há 10 anos, o Dia da Consciência Negra tem se consolidado como um momento de combate ao racismo e também de valorização da cultura afro-brasileira. De personalidades do cenário nacional e internacional a nomes que ficaram de fora dos holofotes, fato é que muita gente colaborou para a construção não só da data, mas para a vivência da consciência negra na prática.

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    Ao criar o Movimento Negro Unificado, Miltão desafiou a ditadura para a questão racial ir da política ao rap

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  • Wanderson Flor

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