Ensinando a chutar portas

Heliana Hemetério lutou para pauta anti-racista incluir gênero e orientação sexual e para saúde ser para todas

Guilherme Henrique Colaboração para Ecoa, de São Paulo Theo Marques/UOL

Bisneta de Hemetério José dos Santos [1858-1939], primeiro professor negro do Colégio Militar do Rio de Janeiro e da tradicional escola carioca Pedro 2º, Heliana Hemetério aprendeu em casa a entrar por portas destinadas a não dar passagem a mulheres negras e lésbicas como ela.

O culto familiar à cultura também nasceu com o gramático e filólogo, que atuava contra a escravidão e o racismo no pós-abolição publicando artigos, contos e crônicas nos jornais da época. Mas continuou com a mãe professora e o pai funcionário do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que garantiram à jovem criada no bairro da Tijuca, zona norte do Rio, uma infância rodeada da "intelectualidade negra".

Cresci em uma família que não tinha dinheiro, mas que sempre privilegiou a cultura e os livros

Com tudo para ser ativista desde cedo, Heliana só abraçou a militância após contrariar o pai, perseguido pela ditadura. Depois disso, abriu muitas portas para a mulher virar elemento crucial nas discussões e decisões raciais e teve de esmurrar tantas outras para o debate passar a incluir a comunidade LGBTQIA+. Hoje, a missão continua, mas ganhou um adendo: ensinar as jovens que precisam abrir e, às vezes, chutar as portas certas.

Contrariando o pai para seguir os passos dele

Deborah Faleiros/UOL

Cercada em casa pelo debate racial, que ia da luta contra o racismo ao vínculo religioso com a umbanda, Heliana cresceu com o pai falando sobre os dramas da discriminação racial e seus impactos na sociedade brasileira.

"Ouvia na escola que o racismo existia porque os negros eram pobres, mas é o contrário: a pobreza existe porque os negros estão nela. Meu pai sempre disse e é verdade: o racismo não acaba com a ascensão econômica. É preciso mais do que isso", comenta.

Ainda que consciente de que algo precisava ser feito, o pai não permitia que a filha se engajasse em movimentos sociais, principalmente porque Heliana saiu da adolescência justamente no meio da ditadura militar (1964-1985). "Meu pai foi preso, perdeu cargo de chefia no IBGE e não deixava eu me expor. Não participei do movimento estudantil, tinha medo de morrer", relembra.

Até entrar no movimento negro na década de 1980, Heliana se formou em história na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), deu aulas em escolas públicas fora da região central até virar funcionária pública de vez. Trabalhou no extinto Banco da Guanabara e foi servidora do IBGE durante 34 anos até 2012.

Ao mesmo tempo que emulava os passos do pai, a entrada no instituto plantou em Heliana a semente para contrariá-lo. "Encontrei muitos antropólogos, sociólogos, todos debatendo o futuro do país", diz. No mesmo período, o fotógrafo e ativista cultural Januário Garcia, morto no fim de junho pela covid-19, convidou-a a conhecer o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras, fundado para promover aspectos da cultura negra no país. "Aí começa o meu ativismo", pontua.

Arquivo pessoal. Arquivo pessoal.

O amor no meio do caminho

Deborah Faleiros/UOL
Theo Marques/UOL

Já de mãos dadas com o ativismo, Heliana se descobriu lésbica no meio de um casamento. "Conheci essa mulher, que virou minha companheira. Foi assustador quando percebi que estava apaixonada."

Com isso, foi para a Bahia viver com o novo amor, que faleceu em 1982. Agora, a vice-presidenta da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Travestis (ABGLT) vive em Curitiba com a nova companheira, a também militante Angela Martins.

A partir dos anos 1990, Heliana amplia o debate dentro dos grupos de mulheres negras sobre a pauta LGBTQIA+, algo que perdura por toda sua militância.

Sou mulher negra e lésbica. Uma coisa não está separada da outra

Já uma liderança do movimento de mulheres lésbicas no Brasil, Heliana participou o 1º Seminário Nacional de Lésbicas, no Rio, em 29 de agosto de 1996. O Dia Nacional da Visibilidade Lésbica é celebrado nesta data e foi criado durante o evento.

Entre 1999 e 2000, ela ainda tocou com outras militantes projetos como o "Solta a Voz", que conversava com mulheres do sistema prisional do Rio, e era organizado pelo Coisa de Mulher.

Ao relembrar a própria trajetória, Heliana vai elencando mulheres que ajudaram gays e lésbicas em um momento de amparo quase nenhum nas esferas institucionais. Cita figuras políticas proeminentes do Rio, como a deputada federal Benedita da Silva e a ex-vereadora e deputada estadual Jurema Baptista. "Se gay e lésbica tem algum direito em lei, devemos a elas", analisa.

Arquivo pessoal. Arquivo pessoal.

A disputa pelo protagonismo

Deborah Faleiros/UOL

A falta de representatividade é algo que incomoda Heliana desde o início em sua militância. "O movimento negro não discutiu e não discute gênero até hoje. Nunca abordaram assuntos como violência doméstica, direitos sexuais e reprodutivos, ou orientação e identidade de gênero. Isso só acontece por força das mulheres."

A avaliação da historiadora se desdobra para a Coalizão Negra por Direitos, que reúne mais de 200 entidades na luta contra a discriminação racial.

A Coalizão tem um papel fundamental, e isso não está em discussão. É uma das coisas mais importantes surgidas no Brasil enquanto estratégia para combater o racismo. Mas é um grupo pautado na campanha política.

Quando o assunto é gênero, a lacuna é outra, diz a historiadora. "O que acontece é que o movimento de mulheres negras não cuidava das lésbicas. Havia e há lesbofobia. No Encontro Nacional de 1988, 80% das mulheres, inclusive líderes, eram lésbicas. Mas, naquele momento, o que importava era gênero e racismo. O debate sexual não era tão importante como veio a ser depois", comenta.

Para Heliana, há uma "guerra silenciosa" na disputa pelo protagonismo das pautas e um embate para evitar um "apagamento histórico". "As mulheres negras cis heteronormativas não falam em nós, mas sabem que nós existimos. Já perceberam que nós seguramos a onda." O que a deixa empolgada é uma nova geração de mulheres negras e lésbicas, que não se calam diante de qualquer tentativa de silenciamento.

As meninas chegam chutando a porta. O que nós, como mais velhas, fazemos é mostrar qual bota usar e qual porta chutar

Heliana Hemetério, historiadora e vice-presidenta da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Travestis (ABGLT)

A saúde como marcador social

Deborah Faleiros/UOL

Ainda nos anos 1990, Heliana deu mais uma guinada e mergulhou no debate da saúde para pessoas negras e LGBTQIA+. Ela ajudou a formular documentos como as políticas nacionais de saúde integral da população LGBT - sigla usada na época.

Os documentos estabelecem diretrizes básicas para gestores públicos implementarem na rede de saúde, mas, para Heliana, tudo fica só no papel. "A Política de Saúde Integral LGBT não existe na prática. O problema é o seguinte: quem vai falar com o usuário na ponta é a pessoa do posto de saúde e, se ela for homofóbica, lesbofóbica ou transfóbica, a política não anda."

Por outro lado, falta estrutura a outros programas. Ela cita como exemplo o Projeto Transexualizador, ação do SUS (Sistema Único de Saúde) em torno da cirurgia de readequação sexual. "É lindo no papel, mas não tem hormônio para essa mulher que passou pela intervenção cirúrgica nem verba, porque a comunidade LGBT está sempre em segundo plano."

Para as transexuais é pior ainda, porque estamos falando de uma mulher que muitas vezes tem um pênis. Esse atendente vai dizer que ela precisa de um urologista. E tem uma mulher trans com uma vagina. Isso tudo gera um estranhamento que, se a pessoa na ponta da linha não estiver preparada para lidar, o atendimento não vai acontecer

Heliana Hemetério, historiadora e vice-presidenta da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Travestis (ABGLT)

O acesso à saúde de pessoas trans faz Heliana traçar um paralelo do estranhamento em meio a profissionais de saúde e entre aqueles que, em tese, deveriam apoiar esse grupo.

"Quando eu fui pro movimento LGBT, lidávamos apenas com gays e lésbicas. Havia uma discriminação [contra trans], porque era uma reinvenção do corpo feminino, uma construção que elas acham ideal e que incomodava. As travestis são grandes lutadoras, e o movimento LGBT tem uma dívida histórica com elas, que sempre andavam sozinhas. Não é à toa que a transfobia mata tanto", comenta.

Dados referentes ao ano passado compilados pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) colocam o Brasil como o país que mais mata travestis e transexuais no mundo.

Camisas do 'Vidas Negras Importam'

Deborah Faleiros/UOL

Ao longo da conversa, Heliana vai fazendo pontes com o passado a todo instante. Conta causos da família, dos pais e de parentes mais distantes. Ao ser questionada sobre o que enxerga no futuro para a população negra do país, ela recorre ao mesmo expediente e cita a situação do filho Lucas, 27, estudante de logística.

"Nós temos um tipo de racismo hoje que não acontecia com tanta frequência. Meu pai, os primos que tenho da minha idade, nunca sofreram 'gerais' [revista policial]. Meu filho já passou por três desse tipo. É uma violência direta, explícita. Por isso acho importante ouvir o que o jovem tem a dizer e fugir do ar senhorial", analisa.

E, citando a filha Joana, 26, estudante de administração, e o neto Caetano, 3, continua:

Fico ouvindo os brancos falarem da pauta antirracial. Antigamente eu era mais educada, mas agora perdi a paciência. Pergunto quantos negros frequentam suas casas, se os filhos têm amigos negros... Rola aquele burburinho e o incômodo. Digo ainda que a única coisa que fazem é camiseta com a frase 'vidas negras importam'. Enquanto pessoas brancas não educarem seus filhos e netos contra o racismo, esse país não muda

Heliana Hemetério, historiadora e vice-presidenta da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Travestis (ABGLT)

CABEÇAS NEGRAS

Deborah Faleiros/UOL

Quem são as pessoas que colaboraram para a formação da consciência negra no Brasil? Criado há 10 anos, o Dia da Consciência Negra tem se consolidado como um momento de combate ao racismo e também de valorização da cultura afro-brasileira. De personalidades do cenário nacional e internacional a nomes que ficaram de fora dos holofotes, fato é que muita gente colaborou para a construção não só da data, mas para a vivência da consciência negra na prática.

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