A teia que eleva mulheres

Após ser forjada no combate a absurdos na saúde, Jurema Werneck agora costura caminhos para outras chegarem lá

Guilherme Henrique Colaboração para Ecoa, de São Paulo Ricardo Borges/UOL

Prestes a completar 60 anos, Jurema Werneck queria mesmo era um tempo para ouvir música na praia e, se a brisa ajudar, ler de frente para o mar. Diz, porém, que o Brasil não a permite desengavetar os planos de sombra e água fresca.

Médica formada pela UFF (Universidade Federal Fluminense), ela atuou em favelas no Rio de Janeiro até se dar conta de que poderia lutar pela saúde de pessoas em vulnerabilidade social de outra forma.

A experiência dentro das comunidades impulsionou a criação em 1992 da ONG Criola, uma das principais organizações na luta pelo acesso à saúde para mulheres negras. O trabalho na organização a levou ao cargo de secretária-executiva da AMNB (Articulação de Organizações de Mulheres Negras) e ao de conselheira no Ministério da Saúde.

Depois de um convite inesperado, Jurema está prestes a completar cinco anos como diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil. Por lá, ela lida com as urgências sociais, a última delas a pandemia da covid-19. Mas tenta fazer a instituição mundialmente conhecida pela luta de direitos humanos que, como ela diz, "nasceu branca", sair do discurso para ser de fato feminista e antirracista. Enquanto isso, abre espaço para que outras mulheres ocupem posições de destaque.

É como uma teia: o fio parece invisível, mas ele está lá. Não paramos de trabalhar.

Fotógrafa natimorta

Deborah Faleiros/UOL

Aos 5 anos, Jurema deixou o Morro dos Cabritos, na região de Copacabana, zona sul do Rio. Os pais, o alfaiate Nilton de Souza Werneck e a costureira e confeiteira Dulcinéa Maria Pinto Werneck, levaram as três filhas para morar em uma casa na Vila dos Servidores Civis da Aeronáutica, na Ilha do Governador. A vida parecia ter melhorado, mas a menina estava mesmo era com a cabeça em outro lugar. "Perdi a vista do mar que nós tínhamos do alto do morro", relembra.

A nova casa veio na esteira do emprego que o pai conseguiu como porteiro. "Era uma porcaria, mas, só por ter um banheiro decente e água encanada, era a melhor casa da família", diz. Lá, ela estudou em colégios militares ao lado dos filhos de militares de alta patente. No colégio Brigadeiro Newton Braga, fez uma pilha de testes vocacionais para descobrir sua vocação.

Não ajudou nada. Saíram 10 profissões, mas gostei porque as primeiras na lista foram artes e música. Mas esse não era o mundo de uma menina negra e paupérrima.

A dúvida permaneceu até o dia em que o pai deu um ultimato. Precisava concluir a inscrição da filha no vestibular. "Ele me perguntou o curso, e falei: 'medicina', mas eu não fazia ideia de nada.". Com a certeza de que não passaria no curso concorrido, também fez prova para o de fotografia. "Nem fui checar o resultado, mas uma amiga foi à minha casa dar os parabéns. Morreu ali a fotógrafa que eu queria ser", lembra.

A partir daí, a trajetória acadêmica foi menos incerta e mais direcionada às afinidades de Jurema. No mestrado em engenharia de produção, dissertou sobre a tradição e modernidade de mulheres negras que atuavam como lideranças políticas e por isso recebiam o título de ialodês, termo usado para definir os orixás femininos nas religiões de matriz africana. No doutorado, a tese avançou na ideia das ialodês, mas identificando-as no samba nas figuras de Leci Brandão, Alcione e Jovelina Pérola Negra.

Escrever para sobreviver

Deborah Faleiros/UOL

Escolher outros caminhos para longe de medicina não foi acidental. Durante o curso no início dos anos 1980, Jurema perdeu as contas das vezes em que foi parada nos corredores da universidade para ser questionada por alunos, professores e funcionários se não estava perdida. "Nunca vi tanta gente rica e horrível no mesmo lugar", afirma.

Dava para contar nos dedos a quantidade de alunos negros. "A gente era maioria entre as faxineiras", ressalta. Para suportar a graduação, Jurema encontrou uma válvula de escape no Grupo de Trabalho André Rebouças. Criado em 1975 pela historiadora e ativista Beatriz Nascimento (1942-1995), o núcleo de estudantes negros fazia reuniões periódicas para não só discutir o racismo, mas também apontar meios de driblá-lo no ambiente universitário.

O problema era o tempo para participar em meio à rotina de leitura e estudo que comprometia até os fins de semana. A saída foi começar a escrever cartas para um dos líderes do grupo, o militante Sebastião Soares, conhecido como "Tiãozinho". As cartas eram uma forma de desabafar sobre as violências cotidianas e de se atualizar sobre os debates. "Era um apoio fundamental, porque eu me sentia muito sozinha, às vezes angustiada por não poder participar", diz Jurema.

Ela só conheceu Tiãozinho anos mais tarde e pessoalmente quando já estava fora da faculdade. O encontro ocorreu no IPCN (Instituto de Pesquisa das Culturas Negras), centro do Rio de Janeiro conhecido por promover debates e discussões das estratégias contra o racismo.

Médica na favela

Deborah Faleiros/UOL

Mais confortável na UFF, Jurema foi se inteirando das organizações de alunos até descobrir um movimento feminista, liderado por Fernanda Carneiro, pesquisadora do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana na Fiocruz, e a socióloga Solange Dacach. "Aí começa a militância", pontua.

A esta altura, Jurema já tinha começado a trabalhar como médica pela prefeitura do Rio auxiliando famílias em situação de vulnerabilidade nas favelas da cidade. Ela estava vinculada à pasta de Desenvolvimento Econômico e Social, que apelidara de "Secretária de Favelas". "A prefeitura olhava o que tinha no resto da cidade sobre habitação, transporte, saúde pública e pensava em como replicar isso nas favelas", explica.

A remuneração não era lá essas coisas, mas representava um salto de renda. "O salário era horrível, mas muito superior ao que minha família estava acostumada a receber em qualquer ofício", conta. Ainda assim, exercia a profissão sem muita convicção. "Eu tinha prometido a mim mesma ficar no máximo dois anos, e acabei ficando cinco", lembra.

Ricardo Borges/UOL

A militância de Jurema nasceu como resposta às atrocidades que encontrou em seu trabalho na Rocinha, favela da zona sul do Rio: centenas de mulheres esterilizadas sem qualquer explicação plausível. "Vi que isso se repetia em outras favelas, uma espécie de coerção, manipulação de informação, e queria intervir de alguma forma", relembra.

Surgiu aí o "Mulher Esterilizada", projeto para acolher e orientar as vítimas dessa ação que ela apresentou a outras ativistas do CEAP (Centro de Articulação de Populações Marginalizadas). "Elas toparam, mas era um órgão de homens, inclusive na liderança. E lidar com homem não é fácil. O machismo impera e o gasto de energia é alto", critica.

O jeito foi criar outro grupo fora do CEAP. Criou a ONG Criola em 1992, ao lado de mulheres como a ativista Neuza Pereira, do Grupo de Mulheres Negras de Jacarepaguá, a socióloga Joselina da Silva e, pouco depois, a assistente social Lúcia Xavier, atual coordenadora geral da organização.

Para ela, o trabalho da instituição é oferecer visões e ferramentas de análise crítica e ação a outras mulheres e atuar junto ao poder público para que isso seja possível. "Viemos cada uma de um lugar. Por isso, não somos temáticas e respondemos à urgência. Acabamos ficando mais vinculadas à saúde, porque eu e a Lúcia viemos desse campo, mas nossa atuação é diversa."

Ainda que norteadas por um objetivo comum — a melhora das condições da mulher negra - as integrantes, diz Jurema, nem sempre concordavam. "O conflito é a pulsão do crescimento, e conosco não foi diferente", diz.

Para Jurema, todos os cargos que ocupou nesses quase 30 anos se devem ao que fez em Criola, da atuação na AMNB à junto do Ministério da Saúde.

Conheci o mundo representando a instituição. Em todos os outros lugares, sinto que apenas estou lá. Mas o meu lugar de fato, onde me sinto bem, é em Criola.

Jurema Werneck, médica e diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil

Sem passo atrás

Deborah Faleiros/UOL

Em setembro de 2016, a jornalista Flávia Oliveira, integrante do conselho consultivo da Anistia Internacional, não quis esperar. Participaria com Jurema de um evento na Bahia, mas ligou enquanto a médica ainda estava no aeroporto e avisou: tinha um assunto importante para tratar.

Chegando lá, Jurema ouviu que seu nome era cogitado para a diretoria-executiva da Anistia Internacional. "Não fiquei muito empolgada. Eu já tinha emprego em Criola e estava feliz. Quase disse, até com certa arrogância, que não precisava", brinca.

O lobby em torno de sua candidatura não cessaria tão fácil. Então diretor-executivo da Anistia, o historiador e cientista político Átila Roque queria que Jurema o sucedesse. Somou-se ao de Flávia e Roque a filósofa Sueli Carneiro, também conselheira consultiva do órgão. Faltava, porém, um detalhe.

Como em vários momentos da vida, eu fui falar com a Lúcia Xavier. A reação dela ia fazer enorme diferença na minha escolha. E ela disse que eu deveria ir, que era importante. Então, eu fui.

Não era, no entanto, só aceitar o cargo. Havia um longo processo pela frente. "Lembro que a última fase era uma entrevista em Londres com o secretário-geral da Anistia, que naquela época era o indiano Salil Shetty. Eu não queria ir para Londres, estava frio. No fim, não teve como fugir: ele veio para o Brasil."

A insistência deu certo, e Jurema assumiu o cargo em fevereiro de 2017. Para ela, o papel da entidade é avançar em momentos de acirramento social.

Quando fica difícil para a Anistia, é porque está complicado para muita gente. É delicado, tem pressão, mas não podemos recuar. A Anistia não pode dar um passo atrás.

Jurema Werneck, médica e diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil

Ainda que batalhe pelos direitos humanos ao redor do mundo, a organização passa internamente por um movimento global para virar um órgão mais plural. No Brasil, a entidade tem intensificado campanhas e ações contra o genocídio de jovens negros.

A Anistia nasceu branca, na Inglaterra, há 60 anos. Há várias Anistias, mas eu estou comprometida com uma que seja feminista e antirracista.

Dentro da Anistia, Jurema é uma das líderes de um coletivo antirracista. Ao lado de outras diretoras-executivas do órgão nas Américas, o grupo apresentou uma proposta na Assembleia Geral da entidade para que o órgão saia do discurso e seja de fato antirracista.

Segundo ela, vontade política não falta. A atual secretária-geral, a francesa Agnes Kalamar, já foi relatora especial da ONU (Organização das Nações Unidas) para execuções extrajudiciais e sabe o papel que o racismo opera na morte de negros no mundo, incluindo o Brasil.

Anistia Internacional Anistia Internacional

A Anistia assumiu compromisso em sua assembleia, e nós esperamos que isso aconteça na prática. Assumir compromisso é fácil, basta olhar a nossa Constituição. Há um caminho enorme pela frente, mas estamos progredindo

Jurema Werneck, médica e diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil

Passado e futuro sob análise

Deborah Faleiros/UOL

Ao longo da conversa com Ecoa, Jurema elenca processos dos quais participou à frente de Criola em uma união de movimentos e pessoas. Um dos marcos é a união de forças com o Instituto Geledés, que também atua em defesa da mulher negra, em torno da Conferência contra a Discriminação Racial em Durban, na África do Sul, em 2001.

De lá, nasceu uma agenda de mobilização, em especial a AMNB (Articulação de Mulheres Negras no Brasil). A partir daí, as militantes foram se espraiando em cargos e conselhos do poder público. "Como num tabuleiro, fomos fortalecendo um coletivo, movendo peças e abrindo espaços", diz Jurema.

Entre as peças que participaram do jogo, ela cita a assistente social Matilde Ribeiro, ex-ministra-chefe da Seppir (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial); a doutora em saúde pública Maria Inês Barbosa, ex-subsecretária de Políticas de Ações Afirmativas da Seppir; Lúcia Xavier, no Conselho Nacional do Ministério da Saúde; e Luiza Bairros (1953-2016), ex-chefe da Seppir e com passagem pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).

Outro exemplo aconteceu em junho deste ano, quando Jurema foi à CPI da Covid no Senado para apontar erros do governo no combate à pandemia. "Estava lá representando não só a Anistia, mas outras organizações como a Oxfam Brasil, o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), e a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência). É só porque falo bem? Não. Tem uma trajetória na militância do movimento negro que sustenta isso", diz.

Léo Otero/Anistia Internacional Léo Otero/Anistia Internacional

Para a ativista, enquanto "racistas orgulhosos" estiverem no poder, o diálogo institucional fica inviabilizado. Não significa, porém, que o ativismo parou. Uma parte, diz, está na Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), outra está na academia produzindo conceitos.

Esperançosa, ela aposta que a formação de profissionais de saúde negros, beneficiados pelas cotas raciais nas universidades, pode acelerar em breve um processo de retomada de espaços públicos. "O movimento parece estar meio disperso, mas vai se reunir de novo. Há uma juventude alinhada na prática antirracista de saúde e em outros setores. É como uma teia: o fio parece invisível, mas ele está lá", diz. "Não paramos de trabalhar", reforça.

Com muito ainda para se fazer, Jurema sonha tirar um ano sabático e concretizar os planos que abrem esta reportagem. "Pergunta para o Miltão [fundador do MNU], se a ideia não é boa. Mas, a depender do Brasil de hoje, isso vai demorar para acontecer", diz.

CABEÇAS NEGRAS

Deborah Faleiros/UOL

Quem são as pessoas que colaboraram para a formação da consciência negra no Brasil? Criado há 10 anos, o Dia da Consciência Negra tem se consolidado como um momento de combate ao racismo e também de valorização da cultura afro-brasileira. De personalidades do cenário nacional e internacional a nomes que ficaram de fora dos holofotes, fato é que muita gente colaborou para a construção não só da data, mas para a vivência da consciência negra na prática.

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