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Qual é a competição que transformou montadoras em 'times de futebol'

Eu nunca acompanhei a Fórmula E, que está em sua nona temporada (2023/2024). Já havia estado em duas corridas da categoria - em 2019, no Chile, e 2023, em São Paulo.

Não me envolvi emocionalmente em nenhuma das ocasiões. Apenas aproveitei as oportunidades para conhecer esse mundo que não é mais assim tão novo, mas ainda é muito recente no calendário da FIA, a federação mundial de automobilismo.

Afinal, como jornalista especializada em automóveis, é muito importante entender como funciona a competição que leva ao limite os carros elétricos, responsáveis por aquela que está sendo uma das maiores transformações da história da indústria automobilística mundial. Não, eu não acho que o veículo a bateria é a única resposta global à mobilidade, já que o mundo não é composto apenas pela Europa ocidental.

Mas, independentemente da região, o veículo elétrico (EV) ganhará cada vez mais protagonismo nos próximos anos. Em alguns locais, será a principal resposta. Em outros, como o Brasil, uma alternativa muito relevante.

No último dia 17, durante o GP de São Paulo, tive uma terceira oportunidade na Fórmula E. A convite da Jaguar, acompanhei o E-Prix de São Paulo pelo segundo ano seguido. E meu sentimento em relação à categoria mudou. Isso não tem nada a ver com o tipo de propulsão, e sim com o modelo adotado, que deixa as corridas de carros mais humanas - e emocionantes.

Modelo este que transforma montadoras praticamente em times de futebol, com direito a uma grande torcida. Quem veste a camisa de uma determinada fabricante de veículos tem a oportunidade, na Fórmula E, de levar essa paixão ao extremo. E o modelo adotado nos treinos classificatórios é um ingrediente a mais.

Classificação

Eu acompanhei os treinos dentro do box da Jaguar, escutando as conversas entre pilotos - Nick Cassidy e Mitch Evans - e chefe de equipe. No meu grupo também estavam o piloto profissional Beto Gresse e integrantes do time da JLR Brasil e América Latina - o CEO João Oliveira e a gerente de marketing de experiência Patricia Nery.

Eles me explicaram como funciona o treino classificatório, que é uma as partes mais empolgantes da categoria. A primeira etapa tem dois grupos, em um grid de 22 pilotos. Os quatro melhores se classificam. Os que ficam para trás são distribuídos pelo grid de acordo com o tempo obtido nessas sessões.

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Os oito classificados - quatro de cada grupo - vão para a final. E aí, é como uma chave de Copa do Mundo, ou de um Grand Slam de tênis. Os pilotos se enfrentam em combate direto, e vão para pista quase ao mesmo tempo - alguns poucos metros os separam. Isso deixa o confronto mais empolgante, até porque os tempos na Fórmula E são muito próximos.

Há quartas de final, semifinal e a grande final, que vai definir quem larga na pole position. O modelo adotado garante muita emoção e uma alta dose de suspense no classificatório, que é disputado na manhã de sábado, horas antes da corrida.

Aliás, é nos classificatórios que os carros atingem as maiores velocidades do fim de semana. Isso porque, na corrida, é necessário fazer gestão da bateria, para que o carro consiga ir até o final. Nesse ponto, não há diferença ante a Fórmula 1. Desde que o reabastecimento foi proibido na principal categoria do automobilismo, os pilotos têm de economizar combustível.

Estima-se que, durante os classificatórios da Fórmula E, a velocidade máxima atingida no final da reta do Sambódromo, onde é realizado o E-Prix de São Paulo, seja de 240 km/h. E tem barulho. Não de motor a combustão. Parece mais uma nave espacial decolando.

No E-Prix de São Paulo, quem ficou com a pole position foi Pascal Wehrlein, da Porsche.

Sete montadoras no jogo

O alemão Wehrlein é um dos muitos pilotos do grid da F-E que já esteve na Fórmula 1. Há também o brasileiro Lucas Di Grassi, que participou de todas as temporadas da categoria de carros elétricos até agora, o belga Stoffel Vandoorne, o francês Jean-Eric Vergne e o suíço Sébastien Buemi, dentre outros. O grid, aliás, tem um segundo brasileiro: Sérgio Sette Câmara.

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De jovens a veteranos, a Fórmula E tem pilotos de altíssima qualidade. Mas a realidade é que a torcida é muito mais para as equipes do que para quem está ao volante. Afinal, das 11 do grid, sete são de fabricantes de automóveis. Além de Jaguar e Porsche, a competição conta com McLaren, Maserati, Nissan, a indiana Mahindra e a Cupra, marca que pertence ao Grupo Volkswagen.

Não se trata da única competição que reúne diversas equipes de fábrica. O Mundial de Endurance já teve, ao mesmo tempo, Audi, Porsche, Nissan e Peugeot na categoria principal, a P1. Isso foi na década passada. A própria Fórmula 1 tem Mercedes, Aston Martin, Ferrari, McLaren e Alpine (Renault).

Mas a F-E chama a atenção não apenas pelo número recorde de montadoras, mas também pelo envolvimento das fabricantes de veículos na categoria - na maioria dos casos, vai muito além dar seu nome ao time. É que a categoria coloca em evidência o tipo de produto que é prioridade da maior parte das fabricantes mundiais, o carro elétrico.

Além disso, o investimento é bem mais baixo do que em outras categorias - principalmente quando comparado à Fórmula 1. Isso incentiva mais fabricantes a abraçarem a Fórmula E como estratégia de marketing, mas também, em escala menor, laboratório para desenvolvimento de produtos.

Os carros da Fórmula E são muito mais parecidos uns com os outros que na Fórmula 1. Seja por regras da categoria ou por teto de gasto, não há espaço para peculiaridades aerodinâmicas, e as baterias são as mesmas para todos os monopostos. Porém, permite-se que cada equipe desenvolva algumas partes.

Entre elas, aquela que é uma das mais importantes para pesquisa de tecnologia que pode ser usada em produtos de rua: o motor. É na parte de trás que estão as peculiaridades de cada carro, e aquilo que faz um ser mais competitivo que o outro - apesar de serem muito próximos em desempenho.

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Competição acirrada e emoção até o fim

A combinação da Fórmula E criou uma competição legal. Os carros muito próximos fazem com que o talento do piloto e a estratégia das equipes sejam mais determinantes para definir o campeão. E há ainda o pequeno espaço para desenvolvimento de partes exclusivas, para ganhar aqueles milésimos de segundos que farão a diferença no final.

Porque a disputa é acirrada. E largar na pole, ou ocupar o primeiro lugar pela maior parte da corrida, pode não ser a melhor estratégia. Quem está na frente acaba tendo maior gasto de energia que os demais. Assim, passar as pouco mais de 31 voltas - no E-Prix de São Paulo - em segundo ou terceiro lugar é importante, desde que não se perca contato com quem está na dianteira.

Por isso, as variações na primeira posição são muito constantes. Em São Paulo, houve vários líderes, mas o protagonismo ficou com Wehrlein, da Porsche, Sam Bird, da McLaren, e Mitch Evans, da Jaguar. O último, natural da Nova Zelândia, parecia estar adotando a estratégia mais correta.

Passou a maior parte da corrida na segunda posição, ultrapassou a poucas voltas do fim e parecia se encaminhar para a vitória, mesmo com Bird colado, logo atrás. Mas aí veio um outro ingrediente que aproxima a Fórmula E da emoção de um esporte como o futebol: o safety car.

As entradas do carro acabam criando uma espécie de prorrogação, aumentando o tempo de corrida - no caso de São Paulo, as 31 voltas viraram 34. Bom para Bird, que acabou conseguindo ultrapassar Evans na última, a pouquíssimos metros do fim.

As arquibancadas estavam bastante ocupadas na hora da corrida. Afinal, a Fórmula E é bem mais democrática que a F1 - havia ingressos a partir de R$ 150. Havia torcida pelos pilotos brasileiros, mas também pela Porsche, pela Jaguar e pela McLaren. E pela Nissan que, com Oliver Rowland, conseguiu ultrapassar outros dois carros também na última volta para ficar com a terceira posição.

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O público se envolveu e empolgou com uma corrida de carros por finalmente ver uma categoria mundial, organizada pela FIA, ser o que a F1 deveria ser, mas há muito tempo não é: emocionante.

Coisas que a gente não vê na Fórmula 1

A Fórmula E quer deixar o automobilismo mundial mais democrático. Com etapas por todo o mundo e ingressos bem mais baratos, além de grande envolvimento das fabricantes de veículos, traz ingredientes que aproximam as corridas de carros daquele esporte que é o mais humano e popular do mundo: o futebol.

O talento dos "jogadores" (pilotos) é fundamental. A classificação é por chaves. As fabricantes de veículos se tornam verdadeiros times. E quem acompanha nunca tem certeza sobre quem será o vencedor. É o oposto da F-1. Lá, a gente já sabe que vai dar Verstappen, a não ser que algo errado aconteça. Antes, era Hamilton e, nos anos anteriores ao domínio da Mercedes, Vettel.

Já o campeonato de Fórmula E está totalmente aberto. Dois dias antes do E-Prix, entrevistei o então líder da temporada 2023-2024, Nick Cassidy. O parabenizei pela liderança, mas ele não se empolgou. "Ainda temos um longo caminho pela frente."

Após o E-Prix de São Paulo, entendi a cautela. Cassidy abandonou a corrida, mas conseguiu manter a liderança. Só que tem o vice-líder, Wehrlein, apenas quatro pontos atrás. A etapa brasileira foi apenas a quarta de 16 do calendário. Na próxima, em Tóquio, tudo pode mudar. Entre as equipes, a Jaguar lidera o campeonato, com a Porsche na segunda colocação.

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Para entregar emoção ao público, a Fórmula E não precisou de abertura de asa móvel, nem mesmo de barulho. Foi só dar um caráter mais humano ao campeonato e buscar aquelas que são o principal vínculo entre o público e o mundo do automóvel: as fabricantes de carros de rua.

Não é à toa que a Fórmula 1 está investindo cada vez mais em conseguir envolvimento das montadoras na categoria. Tanto que criou condições para que, em 2026, mais fabricantes se envolvam com a categoria. A Audi vai entrar, assim como a Ford (esta em parceria com a Red Bull). Tradicionais marcas automotivas dão humanidade às corridas de carro pois, além de produzirem aquilo que o público de fato dirige nas ruas, têm torcida.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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