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Kelly Fernandes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que deveríamos pagar por transporte coletivo mesmo sem usá-lo

URIEL PUNK/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
Imagem: URIEL PUNK/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

20/01/2023 04h00

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É justo que apenas as pessoas que utilizam o sistema de transporte público coletivo paguem por ele? Em meio a agonia do sistema de transporte público coletivo nas cidades brasileiras, cresce o comprometimento da renda de quem não pode renunciar aos ônibus, metrôs e trens para fazer deslocamentos diários. Nas cidades são geradas diferentes respostas, por exemplo: tarifa zero, aumento do subsídio, redução do preço da passagem e criação de bilhetes mais econômicos para pessoas de baixa renda.

Enquanto isso, nas mesas de discussão entre responsáveis técnicos do setor, migração modal é o termo utilizado para nomear a mudança de um meio de transporte para outro. Fenômeno que mais preocupa quem busca a redução do impacto negativo do uso intensivo de carros nas cidades, migração modal é quando as pessoas deixam o transporte público coletivo e passam a usar carros e motos individuais. Isso é alarmante porque os efeitos práticos dessa mudança são a congestão da infraestrutura de circulação e crescimento da emissão de poluentes e Gases Efeito Estufa (GEE), vilões do aquecimento global.

Porém, frequentemente, é deixado de lado o impacto do aumento da tarifa paga por quem segue utilizando o transporte público coletivo, dado que, com menos pessoas utilizando, os custos de operação dos serviços passam a ser divididos entre menos passageiros e passageiras. Situação que se agrava quando o poder público não destina subsídios - ou seja, recursos públicos - para a manutenção de ônibus, compra de combustível e pagamento de salários.

O cenário é ainda mais preocupante nas cidades brasileiras que não diferenciam a tarifa pública da tarifa técnica. Por tarifa pública entende-se o valor que aparece nos ônibus, guichês ou no validador do bilhete eletrônico; já a tarifa técnica é o custo do sistema de transporte dividido pela quantidade de pessoas que o utilizam, e pode ser superior ao valor da tarifa pública e só aparecer nos contratos com as empresas que operam o serviço.

Nesses casos, a diferença entre a tarifa pública e a tarifa técnica é paga por meio de subsídios públicos, receitas extratarifárias ou receitas alternativas arrecadadas por meio de impostos e taxas que, simplificando, são recursos para além das tarifas pagas por quem usa o sistema. Por exemplo, fontes de receita com origem na exploração publicitária de pontos e terminais de ônibus ou cobrança de estacionamento veicular.

Além disso, dividir o valor dos custos operacionais pela quantidade de pessoas transportadas e assim definir o preço da tarifa pode ser profundamente injusto, pois desse modo responsabilizamos um conjunto de pessoas, predominantemente, empobrecido, negro e feminino pela garantia do direito ao transporte.

Isso quer dizer que é esse o conjunto responsável para garantir que toda a sociedade conte com um ônibus passando na frente de casa quando o carro quebra, o dinheiro da gasolina falta ou a consulta médica enfim chega.

E, enquanto esse sistema garante o acesso do transporte público a pessoas que nunca sequer pisaram dentro de um ônibus ou vagão de metrô - sim, elas existem -, aquelas que realizam trabalhos essenciais e que mantêm as cidades em funcionamento, como profissionais do corpo de bombeiros, de enfermaria, de limpeza, da educação e de segurança, têm cada vez mais dificuldade para pagar a tarifa e chegar ao trabalho, escola ou posto de saúde.

Ainda pensando sobre os efeitos de responsabilizar apenas quem usa o transporte público coletivo pela continuidade do sistema, outro reflexo é a superlotação dos veículos e vagões, já que a maior quantidade de pessoas transportadas por viagem é, comumente, considerado algo positivo e resulta em uma maior remuneração para as empresas que operam o sistema, que precisam ter menos ônibus circulando na rua — desconsiderando a segurança e conforto de quem utiliza o sistema, fator que em muitas cidades levou uma parcela da população a substituir o transporte público coletivo por um sistema privado de transporte individual por aplicativos, acentuando a queda abrupta de passageiros vista nos últimos anos.

Contexto que nos leva de volta a pergunta inicial: é justo que apenas as pessoas que utilizam o sistema de transporte público coletivo paguem por ele? Talvez a resposta precise estar relacionada com o lugar que queremos que o transporte público coletivo ocupe em nossa sociedade.

Se acreditamos que o transporte coletivo é fundamental para reduzir emissões de GEE, garantir que as pessoas circulem pelas cidades, acessem equipamentos públicos, disponham de serviços de qualidade e não tenham seu orçamento familiar pressionado com o aumento constante de tarifas, precisamos fazer algo. Do contrário, se o transporte público coletivo é dispensável e mergulhar as cidades no caos é aceitável, basta deixar as coisas como estão e não agir.