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Kelly Fernandes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que ler no ônibus é a melhor opção para contornar a monotonia

Jose Cruz
Imagem: Jose Cruz

Colunista do UOL

23/06/2023 04h00

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Nunca consegui ler no ônibus. Ao sentir desconforto durante a leitura em movimento, causado pelo enjoo ou pelo cansaço visual, acabava desistindo da leitura. Mas durante o período da universidade tive que forçar o meu corpo a se adaptar ao balanço e ruído para conseguir aproveitar as três horas de deslocamento nos percursos de ida e volta para estudar. Com o tempo, ler no ônibus virou um hábito.

A leitura no ônibus era mais desafiadora quando comparada com a leitura no metrô por conta do balanço do veículo, da lotação e das freadas descuidadas. Enquanto lia no aperto, às vezes, levava uma bronca - daquelas que as pessoas dão em silêncio e com os olhos -, pelo espaço ocupado pelo livro ou por não conseguir me equilibrar adequadamente com as mãos e acabar esbarrando em alguém. Mas ler em outro espaço não era uma alternativa.

Ler em um vagão de trem ou metrô era uma experiência muito melhor, apesar de igualmente lotado e do desafio de se manter dentro do vagão quando as portas abriam na Estação Brás. A estabilidade, mais opções de pontos de apoio e iluminação no interior desse tipo de transporte sempre me ajudavam a ler todos os capítulos - ou boa parte deles - necessários para o acompanhamento da matéria ou realização de uma prova.

Com o tempo, o hábito da leitura foi estimulado pela observação de outras pessoas fazendo o mesmo durante o deslocamento, já que ler no transporte público coletivo é uma prática muito comum, além de ser uma atividade que ajuda a aproveitar o tempo no ônibus e não se angustiar tanto com a demora. Lembrando que a ideia não é romantizar o tempo gasto em transporte público, que no Brasil é um problema grave, uma vez que algumas pessoas gastam duas horas diárias ou mais para chegar ao trabalho ou à escola.

Outra curiosidade sobre a leitura no transporte coletivo é o interesse que um livro na mão pode gerar em outra pessoa. Frequentemente notava pessoas se esforçando para ver a capa do livro e saber o que eu estava lendo, talvez com a intenção de entender um pouco mais sobre mim ou incluir mais uma leitura em sua lista pessoal.

Pelo menos é isso que eu pensava quando estava do lado oposto, ou seja, do lado de quem tenta desvendar a leitura de alguém. Às vezes me impressionava com alguns temas, que iam da autoajuda à ficção.

Em um desses dias de leitura no metrô, inclusive, vivenciei um episódio engraçado: uma senhora religiosa me abordou e disse "o Senhor é maravilhoso. Não é, querida?". Fiquei sem ação, dei um sorriso gentil e balancei a cabeça de forma positiva.

Mas, na verdade, não tinha entendido o comentário. Virei o livro que estava lendo para tentar identificar na capa o porquê desse comentário e logo tive uma crise de riso ao reparar que o título, Brasil Pós "Milagre", do Celso Furtado, deu margem para interpretações além da crise econômica brasileira.

Apesar do equívoco, o título do livro induziu uma breve conversa entre pessoas desconhecidas ao permitir a identificação de interesses em comuns. A mesma lógica pode ser aplicada a pessoas que, por exemplo, iniciam conversas motivadas pela estampa de uma camiseta ou pela vontade de deixar uma opinião sobre algo que aconteceu durante o tempo de permanência no ônibus ou vagão.

Todavia, para além de interações movidas pela identificação positiva, pessoas podem sofrer preconceito e discriminação pela escolha de um livro ou demonstração de orientações políticas e sexuais, já que o transporte coletivo também é palco para facetas negativas da sociedade.

A parte curiosa e que revela o quanto nós adaptamos a vida e hábitos cotidianos ao que nos é oferecido em termos de oportunidades sociais, cidade e meios de transporte, é que nunca perdi o ponto ou desci na estação errada por estar lendo no ônibus. Outro dia conversava com amigos sobre a percepção de que depois de muitos anos fazendo o mesmo percurso, o nosso corpo sente quando chega a hora de "descer", mesmo durante os cochilos quando era possível sentar. Aliás, somente lia quando estava em pé ou pela manhã, porque à noite a sorte de um banco vago era sempre a oportunidade de descansar o corpo e a mente.

Hoje em dia continuo lendo no ônibus. Mas as leituras acontecem mais no ponto de ônibus do que durante os deslocamentos. Não só por ainda sentir algum desconforto com o excesso de movimento durante as leituras, mas também porque muitas vezes o tempo de deslocamento é mais curto do que o tempo que passo esperando o transporte passar.

Então, se você se sente confortável lendo no ônibus ou metrô, aproveite o tempo gasto no transporte coletivo para colocar os estudos em dia, entreter-se com uma literatura ficcional ou conhecer algum novo modo de pensar o mundo e que, quem sabe, possa contribuir para outros imaginários sobre nossas cidades e outras condições dos serviços de transporte que temos acesso, que em grande medida está entrelaçada com o tempo de deslocamento. Isso tudo, por exemplo, não poderia ser feito caso estivesse dirigindo um veículo privado e individual.