Viuvez masculina e luto por suicídio: livro joga luz em assuntos tabus

Quando Micaela recebeu o diagnóstico de um câncer de mama, precisou parar de amamentar Francisco. Maria passou a ser levada ao balé pelo pai, Rafael. E ele logo viria a ficar viúvo.

De 2018 pra cá, Rafael Stein, 45, está, diariamente, aprendendo a conviver com esse luto. As lacunas deixadas pela mulher com quem havia se casado desafiou profundamente a sua masculinidade, o seu papel social e o obrigou a aprender a cuidar. Cuidar de si, da casa, dos filhos, de tudo.

Ele conta que, antes do diagnóstico da esposa, estava sempre preocupado com o que a visão conservadora espera: "Há aquela definição dos três Ps do homem: prover, procriar e proteger. Se você faz isso, você é reconhecido como homem. Isso influenciava muito a minha postura e as minhas decisões."

No livro "À Sombra de Sofia" (Folhas de Relva Edições), o protagonista, Paulo, tem um pouco de Rafael. Casado com o amor da adolescência, se mantinha em pé em cima de dois pilares considerados sólidos: o relacionamento e o trabalho. Um homem racional, que só acredita em números e lida com finanças.

Quando o casal decidiu ter um filho, o processo não foi automático. Foram muitas tentativas até que Sofia engravidasse. Depois do nascimento da criança, a felicidade da conquista deu lugar a uma severa depressão pós-parto. Sofia se jogou da janela do apartamento com o bebê no colo.

Jornada de luto

"À sombra de Sofia" retrata um recorte de tempo na vida de um homem comum. São os anos de Paulo ao lado de Sofia, alguns flashbacks da infância de afetos difíceis e sete longos anos depois da morte da esposa.

Aquele homem, pouco acostumado a lidar com sentimentos, passa a viver dias de profunda tristeza, intercalados por tentativas desesperadas de compreensão da tragédia, como uma visita a uma cartomante, a instalações e desinstalações de aplicativos de namoro, a novos amigos, novos desafios, novas perspectivas.

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Embora estejamos acostumados à teoria de Elisabeth Kübler-Ross, das chamadas Cinco Fases do Luto (negação, raiva, barganha, depressão e aceitação), acabamos nos confundindo um pouco com essa proposta. As sensações não se desenham necessariamente nessa ordem, o luto não é linear e nem recebe um ponto final após uma teórica aceitação.

O Modelo do Processo Dual do Luto nos conduz por uma leitura mais arejada do que isso significa. O movimento de reconstrução é pendular: ora estamos mais voltados para a perda ora estamos mais orientados para a restauração.

Ou seja: haverá momentos de mais reclusão, choro e questionamentos, por exemplo, e outros de desejo de restabelecimento. Marcar uma viagem, ir a um show, sair para um restaurante ou começar a dar espaço para um novo envolvimento afetivo faz parte desse processo.

O humor de Paulo oscilava. Em alguns dias, mal conseguia sair da cama, desligar o despertador e enfrentar o dia. Em outros, acreditava na sua capacidade de se recompor, ainda que em passos bem lentos. Livro "À Sombra de Sofia", página 52

Por vezes, essas manifestações de restauração são mal interpretadas pelo senso comum. Há leituras de que a pessoa enlutada não está sofrendo, de que está tentando apagar o que aconteceu ou mesmo que estaria em uma suposta negação. Na realidade, todo o conjunto faz parte. Não se traduz em diminuição de luto, em esquecimento do ente querido que partiu, em minimização do impacto da perda.

O luto é um processo humano, natural e saudável. É uma resposta do nosso enfrentamento diante da quebra do mundo como conhecíamos ou como planejávamos que fosse. É a nossa tentativa de reorganização diante do caos.

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Embora a palavra "superação" apareça algumas vezes no livro de Andreia Modesto, há um momento em que o protagonista reconhece que talvez nunca se recuperasse por completo de suas perdas.

A psicóloga Erika Pallottino, especialista em perdas e luto, avalia que o luto não precisa ser vencido nem ultrapassado, mas, sim, integrado e assimilado: "A história de luto deve ser acomodada à história de vida", explica.

"Sempre que necessário, a pessoa enlutada pode retornar a essa parte da sua vida, para revisitar cenas, relembrar momentos, se despedir de novo, se assim desejar.", pontua Pallottino, que também é sócia-fundadora do Instituto Entrelaços.

O luto por suicídio

Se a morte em si ainda é tabu, é como se o suicídio fosse um tabu dobrado. Uma perda rodeada de estigmas, pontos de interrogação, ausência de despedida e, por vezes, sensação de culpa.

A maneira súbita, abrupta, violenta e imprevisível transforma o luto por suicídio em um luto com características traumáticas. Erika Pallottino, psicóloga especialista em perdas e luto

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O suicídio nunca acontece por uma causa só: um evento agudo pode, sim, desencadear o ato, mas é um fenômeno considerado pelos especialistas como multifatorial. Trata-se de uma questão de saúde pública, que não deve ser alvo de julgamentos ou interpretada como caso de polícia, ingratidão, falta de amor ou de fé.

Não é covardia e nem heroísmo; não é sinal de fraqueza nem de coragem.

Fatores como problemas econômicos, sociais, biológicos, culturais e psicológicos são só alguns que podem levar uma pessoa a ter ideação suicida.

Viuvez masculina

"Lento e desconfiado, Paulo levou um mês para agendar a primeira consulta. Mas venceu a resistência e ligou para a terapeuta. Na sala de espera do consultório, ele tremia nervoso como um jovem antes da primeira entrevista de emprego. Por que será que se sentia assim?" (Livro "À Sombra de Sofia", página 51)

Uma pesquisa recente realizada na Dinamarca mostra que homens viúvos têm 70% mais risco de morrer do que aqueles que não passaram pela perda da esposa. No caso das mulheres, 27% se tornaram mais propensas à morte do que as que não ficaram viúvas.

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Não é correto afirmar que as mulheres sentem mais os efeitos do luto do que os homens. No entanto, há diferença na expressão desse luto.

"Homens sentem assim como as mulheres, sofrem como elas, mas socialmente aprendem sobre silenciar as emoções, sobre serem 'fortes'", salienta Pallottino. "Por isso têm mais tendência a inibirem e adiarem seus lutos, o que pode levar a severas complicações emocionais."

No livro, o protagonista passa a frequentar um grupo masculino de desabafos. Ali acontecem relatos frequentemente anônimos ou que nunca foram ditos em voz alta. Mais uma vez, um processo parecido com o de Rafael Stein, que também circulou por rodas de conversa em moldes parecidos.

Nos dois casos, o grupo de apoio não descartou a necessidade de acompanhamento psicológico e psiquiátrico. "Eu não tinha referência de outros homens", lamenta Stein. Mas hoje, ele mesmo é essa referência que lhe faltou. Inspira outras vivências, inclusive como um dos personagens da primeira temporada de Queer Eye Brasil, da Netflix.

Procure ajuda

Entre os profissionais que tratam de saúde mental e instituições especialistas em prevenção ao suicídio, é unânime a ideia de procurar (ou orientar) ajuda específica sempre que sentir necessidade de acolhimento (ou perceber que alguém precisa). Aqui alguns canais para receber atenção e auxílio:

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Centro de Valorização da Vida, realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, email e chat 24 horas todos os dias.

Mapa da Saúde Mental, que traz uma lista de locais de atendimento voluntário on-line e presencial em todo país.

Pode Falar, um canal lançado pelo Unicef de ajuda em saúde mental para adolescentes e jovens de 13 a 24 anos. Funciona de forma anônima e gratuita, indicando materiais de apoio e serviço.

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