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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Luto não é linear, tem infinitas fases, é triste e também pode fazer sorrir

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Imagem: iStock

Colaboração para VivaBem

11/07/2023 04h00

Poucas semanas depois de o marido de Luciana morrer por suicídio, ela foi a um show dos Rolling Stones. Cantou, pulou e chorou a ausência do companheiro. Foi julgada pelos que não estavam —nem no show e nem no momento em que ela soube que havia ficado viúva, com dois filhos pequenos. "Como assim acabou de perder o marido e já está indo se divertir?", perguntava o senso comum do entorno.

Quatro dias após o meu divórcio, peguei um voo para passar o Carnaval em João Pessoa. Ao contrário do que pode parecer, não fui em busca de belas praias e blocos de folia —embora tenha frequentado os dois. Fui para os braços de uma amiga querida, uma ex-chefe que sempre indicou nortes importantes na minha vida. Soube que era ali que eu precisava estar.

Esses dois movimentos não aconteceram apesar do luto pelas duas perdas, mas por causa dele. Não estamos acostumados a reconhecer, mas essas duas decisões —a de ir ver o Mick Jagger e a de fazer as malas para longe— são expressões de luto. Aliás, aqui não cabe comparação entre viuvez e divórcio, cabe apenas considerar que toda quebra de um vínculo significativo gera, sim, um luto.

Quais são as fases do luto?

Todas. Infinitas. Dos mais diversos jeitos. Aprendemos, como se fosse uma regra, que passamos pela negação, pela raiva, pela barganha, pela depressão e até, finalmente, chegarmos à aceitação, como se fosse um momento de iluminação e um fim de todo aquele sofrimento.

Não era bem isso que Elisabeth Kübler-Ross queria dizer quando desenhou as chamadas Cinco Fases do Luto mas, de alguma maneira, as cristalizamos na nossa cabeça. Ocorre que o luto não é linear, os sentimentos não surgem necessariamente nessa ordem e nem só condensados nessas caixinhas. Tampouco tem uma finalização marcada, como se pudéssemos aferir em quantidade de lágrimas ou reclusão.

O papel da restauração no luto

Não vou me aventurar por explicações acadêmicas, mas o Modelo do Processo Dual do Luto pode nos ajudar, e muito, a limpar o ranço do senso comum. Para ter essa leitura, basta que imaginemos um pêndulo. Ora se move para a perda, ora para a restauração.

Na casinha da perda encontramos itens como choro, lamento, isolamento, fadiga, pesar. Na casinha da restauração encontramos vontade de viajar, criação de novos projetos, inclusão de um novo hobby na vida, o início de uma prática esportiva, por exemplo.

O luto não é a casinha da esquerda, nem a casinha da direita, também não é o pêndulo; o luto é o movimento que esse pêndulo faz. Em alguns momentos nossa orientação é para expressões de perda. Em outros, para as expressões de restauração. E isso é saudável: o luto é um processo humano, natural e desejável diante de uma perda.

O luto só se torna complicado quando ficamos estanques em uma dessas casinhas com uma intensidade forte e por um tempo prolongado —mas isso apenas quem pode avaliar é um profissional da psicologia ou da psiquiatria, de preferência, especialista em perdas e luto.

Portanto, fazer uma receita que era carro-chefe da sua avó na cozinha pode ser expressão de luto.

Conhecer um destino turístico como o seu pai gostaria, mesmo sem ele, pode ser expressão de luto.

Usar uma roupa que era do seu filho que morreu pode ser expressão de luto.

Ver um show dos Rolling Stones pode ser expressão de luto.

Conhecer João Pessoa no colo de uma amiga amada pode ser expressão de luto.

Entrar em um novo relacionamento pode ser expressão de luto.

Aliás, dois meses após a morte do meu pai, adotei meu primeiro cachorro. O Tambor é uma das minhas expressões de luto.

Ou seja: há incontáveis caminhos que encontramos para lidar com a nossa dor e honrar a memória de quem um dia esteve conosco.

O luto é um processo repleto de "tambéns". É triste e também pode fazer sorrir. É dolorido e também pode ser impulsionador. Nos traz raiva e também saudade. A verdade é que o luto nos transforma.

Não cabe a ninguém avaliar, julgar ou questionar com uma régua ou graus da Escala Richter o quanto se vive um luto. Choro demais, choro de menos? Viagem já? De licença ainda? Qual é a forma "correta"? Usar preto, se resguardar, ostentar olheiras? Pode ser também, mas só?

Não se trata de agregar nuances espirituais nessa conversa: acontece que quando perdemos alguém querido, precisamos ressignificar a presença dessa pessoa em nossas vidas. Um vínculo forte foi quebrado, mas que vai ser reconstruído.

A dor vem muito de não sabermos por onde começar essa reconstrução. Não queremos "superar" um ente querido, não queremos esquecer nada, fingir que dá para passar uma borracha no passado; precisamos aprender a lidar com essas perdas, que passaram a fazer parte de quem nós somos.

Luto e rock'n'roll

Três semanas após ter se tornado viúva, Luciana Rocha, hoje com 49 anos, tomou uma decisão: a de comprar um ingresso para ver os Rolling Stones. "Não vou me permitir morrer junto com o Marden", relembra ter pensado.

Em menos de três meses, estava embarcando de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro. Teria sido uma apresentação a ser curtida pelos dois e, mesmo sozinha, ela decidiu viver todas as emoções que viriam. "Lembrei dele, chorei, mas consegui me divertir também", relata "O show foi maravilhoso, mesmo com muita saudade."

A psicóloga considera que foi julgada pelos seus movimentos, mas evitou se importar com as avaliações externas. "Eu entendia que tinha algo muito maior e que eu precisava fazer isso por mim.", finaliza.

A palestra da norte-americana Nora McInerny em um TED traz uma situação semelhante. Ela ficou viúva após o adoecimento do marido e ressalta que a pessoa que ela é hoje, as novas relações que construiu e o espaço que ocupa são fruto de ter conhecido seu parceiro, ter vivido com ele e tê-lo perdido. Embora seu entorno deseje que aquele relacionamento e aquela morte sejam "superados", ela deixa claro: "Eu não deixei Aaron para trás, eu segui em frente com ele."

Quando o pêndulo aponta para a sorte

No começo deste ano, o homem com quem eu havia passado os últimos sete me disse que ia embora. O chão abriu embaixo dos meus pés, chorei, pedi para que achássemos uma saída, para que permanecêssemos. Implorei. Não funcionou. O divórcio se impôs.

Por três ou quatro semanas, fui um caco. Um saco de pão amassado na sarjeta, um bloco de gelo em processo de derretimento num dia de verão. Quase virei um nada.

Nesse processo, perdi amigos. Muitos. Gente que não quis mais ficar. Alguns padrinhos de casamento sequer vieram perguntar como eu estava. Lutos sobrepostos.

Sem que eu pretendesse, logo o amor bateu à porta novamente. Eu abri só uma frestinha e ele entrou, avassalador. Veio trazer um amigo antigo, que sempre soube me ouvir e me acolher.

Um homem lindo de pele negra, olhos amendoados, cabelos raspados, um sorriso que surge fácil, que ilumina ao redor, mesmo em meio a eventuais escuridões. Me faz sentir que tenho sorte.

Não é uma sorte que eu desejei ter. Eu não queria que o meu casamento tivesse acabado. Divórcios não são legais. Mas a sorte pediu passagem e eu soube receber o amor que me puxava a barra da saia insistindo para que eu o aceitasse. Hoje, estou nele por inteiro.

Já verbalizei uma dúzia de vezes ao meu namorado: o nosso relacionamento é fruto do meu luto pelo divórcio. Não de uma maneira mórbida, pelo contrário. É o resultado de eu ter escolhido respirar, de olhar para o horizonte, de aceitar a beleza e as contradições da vida, de entender que o amor não escolhe hora, não espera, só se derrama sobre as nossas cabeças.

No meio do caminho, também percebi que algumas pessoas só me acolheriam se me vissem aos prantos, se eu continuasse sendo aquele saquinho de pão amassado jogado na sarjeta. Também tive de lidar com essas dores.

No movimento pendular do meu luto, esse namoro veio nos segundos, minutos ou horas em que estive orientada para a restauração. Que sorte não ter cedido às vozes do senso comum que às vezes nos orbitam, de não ter me sentido errada em amar e ser amada, de não ter caído na tentação de olhar o calendário para avaliar se era cedo ou tarde.

Nunca é cedo ou tarde para respeitar a nossa pulsão de vida - ainda que ela tenha vindo de uma morte ou de uma perda.

Se você precisa de apoio emocional neste momento, considere entrar em contato com o CVV (Centro de Valorização da Vida).

Por telefone, o número é 188. A chamada é gratuita, sigilosa e o atendimento ocorre 24h. Também há a opção do site. Para atendimentos psicológicos ou psiquiátricos, gratuitos, online ou presenciais, em todo o Brasil, conheça o Mapa da Saúde Mental.