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Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


'Não pode se envolver': como quem trabalha com mortos cuida da saúde mental

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Imagem: iStock

Bruna Alves

Do VivaBem, em São Paulo

24/02/2022 04h00

Quem vê a alegria e o entusiasmo da catarinense Aline Kardauke, 31, ao falar sobre o seu trabalho, nem imagina sua profissão: auxiliar de medicina legal. Entre as suas principais funções estão remoção, transporte, retirada de roupas, limpeza do corpo, abertura das cavidades, sutura (pontos cirúrgicos) e liberação do cadáver. Em outras palavras, ela é uma das pessoas responsáveis pelo cuidado do corpo.

Ao atender o telefone, Aline começou contando que descobriu a medicina legal em 2010, enquanto finalizava um curso técnico de radiologia. Nesse mesmo ano, abriu um concurso público para auxiliar e ela não pensou duas vezes.

"A partir do momento que sou acionada pela polícia, eu me desloco com o rabecão, o carro onde transportamos os corpos, vou até o local da ocorrência, auxílio o instituto de criminalística, pego todas as informações, porque eu que vou fazer a ponte dessas informações para o perito médico-legista. Depois, recolho o cadáver, coloco no rabecão e me desloco até o necrotério", descreve.

Atualmente ela trabalha em uma escala de 24h por 72h. - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Atualmente ela trabalha em uma escala de 24h por 72h.
Imagem: Arquivo pessoal

Ela descarrega o corpo, tira fotos, retira as vestes, lava, coleta sangue, urina. "Nesse momento eu já estou na presença do médico-legista, que diz quais cavidades preciso abrir —que pode ser tórax, abdome, crânio—, isso varia conforme o tipo da ocorrência", conta.

Em seguida, vem uma das partes que Aline considera as mais difíceis: conversar e liberar o corpo para a família. "Tem que ter muita empatia porque cada família reage de uma forma ao óbito", diz, lembrando que qualquer reação adversa não deve ser levada para o lado pessoal.

"Ninguém quer ver a gente, né", diz ela, que costuma compartilhar a sua rotina com vídeos no TikTok, onde já acumula mais de 210 mil seguidores.

Apesar de trabalhar com a morte diariamente, Aline diz que não faz terapia e que encarar o dia a dia como um ofício ajuda. "Tem que gostar do que faz, senão você não aguenta. Não existe dinheiro no mundo que pague entrar no meio do mato onde o rabecão não entra, num frio do caramba e com chuva, para transportar um cadáver".

Para ela, encarar a morte como ela de fato é facilita seu trabalho. "Eu não vejo mais aquele corpo como uma pessoa, eu vejo como uma matéria da qual eu tenho que respeitar muito, porque alguém já amou, porém é uma matéria sem vida", diz.

Isso não quer dizer que ela não tenha se comovido com várias situações. "Entretanto, elas nunca me impediram de eu realizar o meu trabalho e que eu evoluísse com ele".

A auxiliar de medicina legal só lamenta que essa seja uma área invisível e ainda muito desvalorizada, mas afirma que sabe o valor da sua profissão. "Eu não preciso de um feedback verbal porque sei que no fundo eu estou ajudando a família. E quando tive esse entendimento, mudei de pensamento em relação a essas coisas".

"O que mexe com a gente é a história"

Há mais de 20 anos, ele é funcionário público de Santo André, no ABC paulista - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Há mais de 20 anos, ele é funcionário público de Santo André, no ABC paulista
Imagem: Arquivo pessoal

Ao contrário de Aline, que escolheu a profissão, o objetivo inicial do agente funerário Jairo Teodoro, 51, era apenas conseguir passar em um concurso público. Ele conseguiu, mas não para a área que queria. Por isso, a ideia era começar o trabalho e depois migrar para outro departamento. Nisso já se foram 20 anos.

"É maldição isso aqui, quem entra não consegue sair mais", diz, aos risos, contando um pouco de sua rotina. "Eu faço tanto a remoção da pessoa que morreu em um apartamento quanto em via pública ou em hospital. E também fazemos o serviço do IML [Instituto Médico Legal] para os velórios. Cada lugar é de um jeito, aqui isso tudo é responsabilidade do serviço funerário municipal", explica.

Na prática, entre suas principais funções estão a remoção do corpo, higienizar, preparar para o velório. Tudo isso em uma escala noturna de 12/36, ou seja, uma noite sim e outra, não.

Para Teodoro existem duas situações que são mais difíceis do que lidar com os corpos em si. Umas delas é conseguir remover o corpo em locais de difícil acesso, onde o carro não entra, como em comunidades periféricas ou em mata fechada. "Eu sempre falo para quem está entrando agora para tentar não se envolver. Entra, faz o seu trabalho e vai embora", relata.

"Eu já cheguei para retirar vários corpos de uma mesma família que um ex-marido matou, e quando entrei as crianças estavam em cima dos corpos chorando", conta. "É uma coisa que choca demais. Ninguém vê. São histórias nossas".

Para ele, um tratamento psicológico contínuo deveria ser uma regra para todos que atuam em profissões semelhantes, mas ele também não faz acompanhamento. "A nossa profissão é muito mais invisível do que se imagina, prova disso foi a pandemia de covid-19. Os hospitais de Santo André ligavam para nós desesperados, porque eles não tinham onde botar os corpos. A minha equipe chegou a recolher 20 corpos em uma noite", desabafa.

Teodoro conta que lidar com o corpo de crianças que morreram em acidentes domésticos, vítimas de acidentes de trem, casos de jovens suicidas, é sempre muito difícil - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Teodoro conta que lidar com o corpo de crianças, vítimas de acidentes de trem, casos de jovens suicidas é sempre muito difícil
Imagem: Arquivo pessoal

Qualquer profissão precisa de acompanhamento psicológico

Todos os profissionais, independentemente da profissão, deveriam ter acompanhamento psicológico. "Porque qualquer profissão que a gente exerça representará algum nível de impacto na nossa saúde mental", diz Erasmo Miessa Ruiz, psicólogo, professor da UECE (Universidade Estadual do Ceará), especialista em tanatologia (estudo científico da morte) e bioética.

No caso específico dos agentes funerários, auxiliares de necropsia, médicos legistas, que lidam diariamente com intenso desgaste físico e emocional, esse cuidado é ainda mais necessário.

"Lidar com a morte é algo que pode ser muito estressante para a maioria das pessoas, e pode representar dificuldades intensas de adaptação no começo", avalia o professor da UECE, acrescentando, porém, que essas dificuldades podem ser superadas posteriormente, sobretudo, com auxílio psicológico.

Lidar com o luto dos outros também não é uma tarefa fácil. Tania Alves, coordenadora do Ambulatório de Luto do IPq-HC (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo), ressalta que pessoas que trabalham com corpos são vistas como "representantes" diretos da morte. "Então, aquele medo que a pessoa tem da morte é transferido para o agente funerário. É um deslocamento do medo da morte", define.

Além disso, pesa a questão de a pessoa estar lidando com um aspecto da vida que nem ela mesma, muito provavelmente, estaria preparada emocionalmente para lidar, segundo Ruiz.

Para ele, determinados traços de personalidade podem favorecer ou dificultar algumas práticas de trabalho. "E o desafio que será colocado é a capacidade que cada pessoa terá de se adaptar ao que é exigido para a função", diz.

O que fazer para lidar com o luto que não é seu?

Primeiro, é preciso tentar diferenciar o trabalho da vida pessoal. "E também ter um grau de saúde mental que seja possível levar a rotina", indica a coordenadora do IPq. Mesmo assim há trabalhos que lidam com o inesperado, por isso, nem sempre é possível permanecer blindado. "Evitar de sentir não tem como", afirma Alves.

A dica é aceitar que somos humanos e respeitar o próprio tempo, tendo em mente que a morte pode chegar de uma forma horrível, simples ou inusitada.

Natália Santana, psicóloga especializada em luto, cerimônias e rituais fúnebres, explica que lidar com a morte todos os dias leva os profissionais para um lugar conhecido, o que tende a facilitar a rotina e lidar com opiniões alheias. "As perguntas e a curiosidade dos outros fazem parte, porém mostrar respeito pelas histórias que conhecemos e pela profissão que escolhemos inibe alguns comentários indesejados", diz.