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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Vacina mRNA com imunoterapia: essa dupla pode impedir a volta do melanoma

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Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

22/12/2022 04h00Atualizada em 22/12/2022 12h25

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Se tem uma coisa que certos tumores sabem fazer muito bem é se fingirem de células perfeitamente normais para escaparem do escrutínio do sistema imunológico. Ora, caso mostrassem quem são, provavelmente terminariam liquidados por nossas defesas, acostumadas a dar cabo de tudo aquilo que é estranho ao nosso corpo.

O melanoma sempre foi, de longe, o mais terrível dos cânceres de pele — na verdade, um dos mais terríveis cânceres de todos os tipos — justamente por ser mestre nessa espécie de disfarce. Feito um lobo em pele de cordeiro, engana o que poderia barrá-lo e assim, sem o menor obstáculo, se espalha velozmente.

Agora imagine se fosse possível desmascará-lo bem diante das células imunes e, mais do que isso, se elas já tivessem sido muito bem treinadas para derrotá-lo depressa. O melanoma, então, não teria muito para onde correr.

Desse jeito, depois de a pinta escura e com bordas irregulares ter sido arrancada pelo bisturi, o sistema imunológico conseguiria varrer uma e outra célula maligna fugidia, capazes de crescerem e semearem a volta da doença amanhã ou depois.

Pois foi isso o que cientistas fizeram quando combinaram um imunoterápico de nome complicado — impossível decorar pembrolizumabe! — e uma vacina de RNA mensageiro. Sim, leu certo: criada a partir da mesmíssima plataforma revolucionária usada na produção de vacinas contra a covid-19.

Os resultados de um estudo com 157 pacientes deixaram claro que a dobradinha reduziu barbaramente a probabilidade de a pessoa ter uma recidiva ou morrer desse câncer de pele — ameaça que já tinha diminuído bastante com o emprego, na última década, da imunoterapia sozinha.

O risco de um melanoma

Há vários tipos de câncer de pele, que representam entre 27% e 30% de todos os casos de tumores malignos do mundo. "Felizmente, entre eles o melanoma não é o mais frequente", observa a oncologista pediátrica Marcia Datz Abadi, diretoria médica da MSD Brasil, empresa biofarmacêutica reconhecida por inovar no campo da imunoterapia, modalidade de tratamento que mudou a cara dessa doença.

Antes, a realidade era assustadora. "Quando me formei, se alguém descobria um melanoma que já havia começado a se espalhar, os médicos não apostavam em uma expectativa de vida maior do que um ano", lembra a doutora.

A ameaça de esse câncer brotar na pele é mais forte para quem é muito claro — em pessoas negras, quando surge, não raro está na palma das mãos ou nas plantas dos pés, regiões menos pigmentadas — ou, ainda, para quem tem predisposição genética, com mais casos na família.

Outro fator de risco importante é tomar sol sem proteção no dia a dia. Daí que, no ensolarado Brasil, em qualquer região todo mundo está sujeito.

"Diminuir a exposição à radiação ultravioleta é um dos caminhos para evitar o melanoma", orienta Marcia Abadi. "Vale usar filtros solares, cobrir-se com roupas, usar viseiras ou bonés", enumera. E, sim, você deve evitar ficar sob o sol entre 10 horas da manhã e 16 horas da tarde, quando seus raios não perdoam ninguém.

Perdendo a máscara

Por que um tumor cruel, como o melanoma, passa batido bem diante do nariz das células imunológicas? A resposta rendeu um Prêmio Nobel ao imunologista James P. Allison, do MD Anderson Cancer Center, nos Estados Unidos, e ao seu colega Tasuku Honjo, da Universidade de Kyoto, no Japão.

A dupla revelou que as células malignas produzem duas proteínas capazes de impedir a atuação do sistema de defesa — seriam, vá lá, as máscaras do seu disfarce. Uma delas é a PD-1, que o pembrolizumabe desenvolvido pela MSD bloqueia, acabando com o esconde-esconde.

"Ele faz com que a célula tumoral se mostre para o linfócito T, que daí é capaz de atacá-la", resume a Marcia Abadi. Logo de saída, o imunoterápico foi testado no melanoma. Não por nada: "Esse é um câncer bastante imunogênico", informa a médica. Isso quer dizer que é bastante sensível às investidas das nossas defesas.

Imunoterapia em estágios precoces

Atualmente, o pembrolizumabe tem trinta indicações aprovadas pela Anvisa, sem ficar muito longe do que o FDA já autorizou nos Estados Unidos. "É usado para outros tumores que também são muito imunogênicos, como os de rins e o de células pequenas nos pulmões, mas não só neles", conta a diretora médica da biofarmacêutica.

No caso do melanoma, no início o tratamento imunoterápico era prescrito apenas para quem tinha a doença metastática, isto é, que já tinha se distribuído pelo corpo. Aliás, isso agora é o padrão.

"Mas, depois, foi cogitada a possibilidade de usá-lo em casos precoces, oferecendo a imunoterapia quando o melanoma nem começou a se espalhar ou quando só pegou um único gânglio, por exemplo, mas a gente sabe que, mesmo depois de retirado cirurgicamente, ele tem boa chance de recorrer", explica a médica.

O estudo que liberou a imunoterapia para esses pacientes com alto risco de recorrência mostrou que ela reduzia esse perigo em 46% quando comparada a quem não fez o mesmo tratamento, usando placebo — um medicamento falso — ou fazendo apenas a cirurgia.

É bom saber disso para entender o salto proporcionado quando se combinou a vacina V940 da Moderna, empresa de biotecnologia americana que tem uma baita expertise na plataforma de RNA mensageiro, com o remédio da MSD, que domina a imunoterapia.

"Juntos, aumentamos a chance de o paciente ficar realmente curado", diz Marcia Abadi, com os olhos brilhando de entusiasmo. Não à toa.

A dobradinha com a vacina

A combinação foi testada em um estudo que os cientistas chamam de fase 2b. O que significa? "Na fase 1, avaliamos a segurança, se não fazia mal para ninguém", explica Marcia Abadi. "Já um ensaio de fase 2 serve para ver a eficácia, mas em um pequeno número de pacientes."

A diferença quando alguém fala em fase 2b é que, em vez de comparar o que está sendo testado com placebo, são feitas comparações com o tratamento considerado padrão — no caso, com o imunoterápico sozinho.

Aí se notou uma diminuição de 44% no risco de o paciente que usou a combinação vacina e imunoterapia morrer ou ver o melanoma voltar. Ou seja, são 44% em cima daqueles 46% de redução já obtidos com o pembrolizumabe isoladamente, que já faz quatro em cada dez pacientes sobreviverem sete anos ou mais.

Interessante você saber que os testes com a V940 no melanoma deram os seus primeiros passos ainda em 2016, três anos antes de a covid-19 aparecer. A vacina de RNA mensageiro, que vinha sendo longamente estudada contra esse câncer de pele e outras doenças, apenas foi adaptada para atacar o coronavírus.

A facilidade para adaptá-la, por sinal, é outro ponto por trás do sucesso do resultado recente no melanoma.

A vacina é personalizada

Assim como o RNA mensageiro ensina características do Sars-CoV-2 para as nossas defesas e, depois, some do mapa, ele é capaz de treinar os linfócitos para atacar as células do melanoma, que seriam facilmente reconhecidas graças ao pembrolizumabe bloqueando a molécula PD-1 usada para se passarem por boazinhas. Essa era a tese.

"Na prática, porém, tinha uma dificuldade extra", conta a oncologista. "Um melanoma nunca é igualzinho a outro. Cada um tem suas mutações."

Por isso, a vacina foi totalmente personalizada para o tratamento combinado. "Analisamos as mutações da biópsia do tumor de pele", explica. "Com ajuda de um algoritmo, o sequenciamento genético de nova geração apontou 34 delas que seriam específicas daquele melanoma."

Na verdade, para garantir isso, os cientistas também checavam se essas mesmas mutações não eram encontradas no sangue, que serviu de parâmetro de tecido sadio. "Elas tinham que ser do tumor de pele e só dele", justifica Marcia Abadi.

Com as informações enviadas ao laboratório da Moderna, nos Estados Unidos, em semanas os cientistas produziam uma vacina de RNA mensageiro capaz de treinar os linfócitos para atacar células com as 34 mutações do melanoma daquele determinado paciente.

Só essa plataforma de vacina é ágil o suficiente para produzir um imunizante sob medida para cada um em tempo recorde. Pancada mais certeira no câncer, impossível.

Próximos passos

O estudo deverá ser apresentado em um grande congresso internacional ainda no primeiro semestre de 2023. Também no ano que vem, devem ser recrutados pacientes para a fase 3 de pesquisa, envolvendo muito mais gente. "O Brasil é um forte candidato a participar", acredita a médica. Por aqui, temos 8.400 casos de melanoma por ano.

Mas a ideia é que, seguindo a rota que foi trilhada pela imunoterapia sozinha — a qual, lembrando, começou no melanoma e hoje é aplicada contra vários tumores — , a combinação do imunoterápico com a vacina de RNA mensageiro seja estudada em outros tipos de câncer. Esse futuro promete.