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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Semaglutida oral: o novo remédio para diabetes é mesmo uma revolução?

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

12/04/2022 04h00

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Tenho três respostas se me perguntam se a semaglutida oral é uma revolução no tratamento do diabetes tipo 2: sim, não e talvez. E acredite: existem bons argumentos para todas elas.

A resposta é sim: nunca vimos nada como a semaglutida oral

Devemos reconhecer no lançamento que acaba de acontecer no país um tremendo feito da ciência: ora, o princípio ativo da semaglutida, o famoso análogo de GLP1, é um peptídeo. Ou seja, uma estrutura que lembra uma corrente de aminoácidos, a unidade básica das proteínas.

E, quando uma proteína cai no estômago, ele não quer nem saber se é remédio ou se é bife. Estraçalha tudo, cumprindo uma de suas missões na digestão, que é transformar a molécula proteica grandalhona em partículas suficientemente pequenas para atravessarem as paredes intestinais.

Isso é lindo quando se trata de um naco de carne do almoço e péssimo quando se trata de um medicamento que precisaria chegar ao seu destino como um peptídeo intacto.

Mas os cientistas fizeram a magia acontecer: blindaram a molécula da medicação para ser absorvida íntegra, ali mesmo no estômago. Isso é, sim, uma revolução e tanto.

A resposta é não: para o diabetes em si, oral ou injetável dá na mesma.

Sabe aquela história de que às vezes o fim justifica os meios? A chave do sucesso da semaglutida é entregar ao organismo — seja por um comprimido, seja por uma injeção sob a pele, tanto faz — uma substância que age como o GLP1 (sigla do inglês "glucagon-like peptide-1"), hormônio produzido no intestino delgado.

Então, sob esse prisma, a tal revolução não é coisa nova, guardada na cartela dos comprimidos recém-lançados. Ela começou lá no final dos anos 1980 quando a molécula análoga — quer dizer, parecida — do GLP1 foi descoberta no monstro-de-gila, um lagarto esquisito e venenoso encontrado nos Estados Unidos e no México.

De lá para cá, surgiram vários remédios para diabetes e até mesmo para a obesidade à base análogos do hormônio — bem verdade que todos, com exceção da semagludita oral de agora, são injetáveis.

"Mas lembre-se: o GLP1 é que é o verdadeiro pulo-do-gato", reforça o endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, pesquisador do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, ligado à USP (Universidade de São Paulo). "Não existe nada igual ao uso dessa substância para tratar o diabetes", afirma ele.

"Nada igual", ao pé da letra. Afinal, já foram feitos estudos que os cientistas chamam de cabeça a cabeça, comparando os efeitos dessa classe de medicamentos com outros remédios prescritos para o diabetes. E os resultados dos análogos de GLP1 são realmente bem superiores.

Eles não apenas controlam os níveis de glicose do sangue como praticamente zeram o risco de hipoglicemia, a queda abrupta desse açúcar na circulação, que é um dos grandes pesadelos dos diabéticos.

"Promovem ainda uma ótima perda de peso, diminuindo a gordura do abdômen, que é aquela que inflama o organismo pra valer", acrescenta Couri. Aliás, o GLP1 também tem efeito antiinflamatório.

Acabou? Que nada! "Há uma ação direta sobre o coração, que o ajuda o bombear o sangue", descreve o endocrinologista. "E, nos rins, o GLP1 favorece a eliminação do sódio, aliviando a hipertensão."

Graças a esse combo — um coração que trabalha melhor, uma pressão mais controlada e uma glicose sanguínea sob rédeas curtas —, é fácil entender por que estudos com a versão injetável da semaglutida mostram que ela reduz a incidência de infarto e AVC (acidente vascular cerebral). E eles são a principal causa de morte entre quem tem diabetes.

Mas essa revolução — a de um remédio que contra-ataca o diabetes em diversas frentes, sem se limitar à questão da glicemia — não acontece porque GLP1 foi engolido. Ora, a semaglutida aplicada por meio de uma picada subcutânea, que existe no Brasil desde 2019, leva aos mesmíssimos benefícios.

A resposta é talvez: o remédio muda a vida de alguns, mas não fará a diferença para muitos

Dizer que o novo comprimido revoluciona o tratamento do diabetes é um exagero sob a ótica da saúde pública. Como acontece com a semaglutida injetável, já que o preço da versão oral é quase igual, o tratamento custa entre 900 e 1 mil reais por mês.

Detalhe: "A semaglutida é excelente, mas não adianta tomá-la por poucos meses. É para sempre ou o benefício não existe", esclarece o doutor Couri. "Por isso, peço para o paciente refletir e, se ele acha que corre o risco de um dia faltar dinheiro para comprar, melhor nem começar. Aí, pensamos em mais alternativas de tratamento."

Sob essa condição, fica claro que apenas uma minoria dos 16 milhões de brasileiros com diabetes irá se beneficiar. E, assim, a chegada da semaglutida oral não fará a revolução olhando para a população como um todo. No entanto, se a gente focar apenas em quem consegue bancá-la, aí talvez.

Para quem vale a pena a semaglutida oral?

Esta resposta só pode sair da boca do próprio paciente. Para Couri, a opção em comprimido ajuda a resolver um problema grave em qualquer doença crônica: a falta de engajamento. Tem gente que sente pânico de agulha, mesmo que ela seja milimétrica, incapaz de ir fundo.

Para os que não ligam para a picada, a semaglutida injetável tem a seguinte vantagem: é aplicada uma única vez por semana, o que facilita para quem vive correndo. No sangue, depois de injetado o GLP1 gruda em uma proteína, a albumina, e vai sendo desprendido aos poucos.

Já a semaglutida oral é para ser engolida todo santo dia, seguindo uma disciplina rigorosa. O comprimido deve descer acompanhado de 120 mililitros de água, cerca de meio copo, não mais. E a barriga precisa estar completamente vazia, com um jejum de quatro ou seis horas. Depois, espera-se outra meia hora para comer.

No comprimido, o análogo de GLP1 se encontra cercado de outra substância, o caprilato de sódio, graças a uma tecnologia chamada SNAC, criada por uma empresa que a Novo Nordisk, laboratório farmacêutico que desenvolveu a semaglutida, acabou comprando.

"Essa tecnologia provoca um aumento de pH apenas ao redor do comprimido", explica Carlos Eduardo Travassos, gerente médico da Novo Nordisk. "Como o seu entorno fica bem menos ácido, a pepsina, molécula que quebra as proteínas no estômago, não consegue agir direito."

Então, as moléculas de GLP1 migram até a parede estomacal e se ancoram bem ali — entende por que a barriga precisa estar vazia, sem nada para atrapalhar? Desse modo, uma parte delas é absorvida. Ainda assim, só de 1% a 2% passam incólumes. Por isso é que as dosagens nos comprimidos são de 3, 7 e 14 miligramas, bem maiores do que as encontradas na versão injetável. No final, o que vai parar na circulação é semelhante.

O que faz o GLP1 do remédio

Além de ajudar diretamente os rins e o coração, o GLP1 produzido pelo corpo humano quando a comida alcança o intestino delgado faz três coisas.

"No pâncreas, é como se o hormônio esquentasse os motores da fábrica de insulina, avisando que logo mais chegará glicose no sangue", ensina Carlos Eduardo Barra Couri, da USP de Ribeirão Preto. Mas, mesmo no remédio, o hormônio só faz isso se esse açúcar estiver por lá, daí o baixo risco de hipoglicemia.

No cérebro, o GLP1 ajuda a produzir a sensação de saciedade. Ora, de barriga cheia — melhor dizendo, de intestino cheio —, você não precisaria correr atrás de comida tão cedo. Por último, com a mesma finalidade, a substância lentifica os movimentos do estômago.

"Por isso, com o remédio, alguns sentem empachamento e náuseas", explica o endocrinologista, dando o motivo por que as dosagens são aumentadas aos poucos até o paciente se adaptar àquela que seria ideal para tratar o diabetes, que é de 7 a 14 miligramas na versão oral.

É que o GLP1 produzido pelo corpo humano dura uns três minutos. Nesse vapt-vupt, ninguém perde o apetite para o lanche da tarde quando o almoço alcança o intestino. Já o análogo do GLP1 do medicamento é duradouro e potencializado. Isso explica a perda de peso dos pacientes.

Por que a semaglutida oral não é indicada para a obesidade?

"Simples: porque ainda não há estudos em pessoas com excesso de peso e sem diabetes", responde a endocrinologista Cintia Cercato, presidente da Abeso (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica).

Na versão injetável da semaglutida, a dosagem necessária para os casos de obesidade, aprovada nos Estados Unidos desde o ano passado, é de 2,4 miligramas. Ou seja, ela é bem maior do que aquela usada para o diabetes. "E, sendo assim, aguardamos ver o quanto a dosagem da versão oral precisará ser aumentada para tratar o excesso de peso e se continuará tudo bem", diz Cintia Cercato.

A presidente da Abeso sabe que, para o paciente, a tentação de tomar a novidade para emagrecer será grande, mas está longe recomendar o uso fora da bula ou off label. "Muito melhor usar com orientação médica aqueles análogos de GLP1 que já reúnem dados sobre eficácia para quem está muito acima do peso", diz ela. "Aliás, eles são o retrato de uma nova era do tratamento para emagrecer, em que os remédios são muito mais seguros do que no passado."

Mas lembre-se: na obesidade, ainda não estamos falando da semaglutida oral. Essa outra possível revolução precisa de um tempo, ou melhor, de estudos para acontecer.