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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Leptospirose: fique de olho nesta e em outras doenças dos tempos de chuva

Carro encoberto por enchente em rua de Marabá, no Pará - Ueslei Marcelino/Reteurs
Carro encoberto por enchente em rua de Marabá, no Pará Imagem: Ueslei Marcelino/Reteurs

Colunista do UOL

20/01/2022 09h38

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As chuvas intensas que desabam desde dezembro pelo país já provocaram alagamentos em 11 estados brasileiros. Todos nós vimos cenas de casas cobertas de água e de pessoas ilhadas ou desabrigadas. E, infelizmente, a estiagem pode estar longe.

Além do risco de morte por afogamento e todo tipo de acidente durante o aguaceiro, há outro de que ninguém fala tanto, mas que a gente deveria comentar, até para todo mundo se precaver: em um cenário de enchentes e desabamentos cresce demais a incidência de doenças de transmissão hídrica. Ou seja, pela água.

Aliás, nem é preciso acontecer uma catástrofe nessas proporções, pois todo ano os casos aumentam nas temporadas de chuva, pelo simples fato de a gente encontrar enormes poças e lama pelas ruas.

"Sem contar que enchentes podem trazer o esgoto para fora de sua circulação normal, contaminando até mesmo os locais de tratamento de água", observa o médico Décio Diament, consultor da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), que é também do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo.

A população deveria ser orientada sobre como evitar essas doenças e, também, aprender a ficar esperta aos seus sinais para, se for o caso, procurar ajuda médica no tempo certo. Se bem que a lista delas é enorme.

Temos a hantavirose, mais rara, que pode atacar o coração e os pulmões e que, como o nome indica, é provocada por um vírus. "Outra infecção de transmissão hídrica causada por um vírus é a hepatite A", diz Diament. "Ela acontece quando a pessoa toma água ou ingere alimentos contaminados."

Aliás, por causa da contaminação da água de beber e da comida, épocas de chuvas também são sinônimo de dor de barriga: "Há muito mais casos de diarreias infecciosas, que podem ter tanto vírus quanto bactérias por trás", nota o infectologista.

Há, ainda, males como dengue, zika, chikungunia e malária, transmitidos por mosquitos que proliferam nas águas empoçadas. Mas, tirando esses que envolvem insetos, o resto tem como característica o contato com dejetos, sejam humanos ou de animais.

E, sendo assim, não podemos nos esquecer de uma doença sobre a qual vou espichar a explicação porque o número deve ser muito maior do que o oficial, que aponta para entre 3.000 e 4.000 episódios anualmente: a leptospirose, transmitida pela urina de ratos. E não se iluda, porque, quando chove em excesso e a água sobe, eles saem nadando e não se incomodam nem um pouco em fazer xixi ao mesmo tempo.

"Na verdade, para cada caso de leptospirose registrado, sabemos que devem existir até outros dez que não foram notificados", calcula o doutor Diament. "Portanto, estamos falando de uns 40 mil indivíduos com leptospirose por ano." E, olhe lá, isso sem considerar o chuvaréu deste 2022, que em muitas regiões começou literalmente debaixo d'água.

De dez a 15 ratos para cada paulistano

Este é o cálculo da Divisão de Vigilância de Zoonoses de São Paulo a respeito da população de ratos na maior metrópole do Brasil. Mas conto isso só para você, acreditando que os roedores estão bem longe de sua vida, saber que não é bem assim.

Eles provavelmente estão presentes em proporções parecidas em outras cidades brasileiras. Aliás, quando se trata da leptospirose, nem precisa ser rato urbano — os roedores silvestres, que vivem no campo, também são excelentes transmissores de bactérias do gênero Leptospira.

"Algumas delas vivem no meio ambiente sem nos causar mal, mas dez são patogênicas", explica Décio Diament. "E essas dez espécies causam a mesma doença, que no início até parece uma gripe forte atormentando de uma hora para outra."

O problema é que esses micróbios sobrevivem muito bem nos rins do rato e, no entanto, ele mesmo nunca adoece. Então, se torna um reservatório da Leptospira, que sai com a urina.

Para essa bactéria a água de chuva tem uma temperatura pra lá de agradável. Pode ficar nela de boa. E não some depressa depois, permanecendo nos resíduos úmidos, como a lama que se espalhou por todos os cantos, durante um bocado de tempo.

Para evitar o contágio

"Doenças de transmissão hídrica, como a leptospirose, não são um problema de saúde, mas de engenharia", costuma repetir Décio Diament, lembrando que às vezes a canalização de um córrego em uma comunidade já faz diminuir os casos.

Quanto aos ratos, cá entre nós, eles são maioria em cidades da Europa e da América do Norte também. "Mas, lá, a leptospirose é uma doença de baixa frequência, já que não há enchentes como aqui", afirma o infectologista.

O que podemos fazer então? Além de evitar pisar em poças enlameadas pelo caminho depois que a chuva passa, é fundamental tomar o seguinte cuidado: "Se entrou água ou lama em casa ou em qualquer outro lugar, não dá para limpar tudo com os pés descalços, nem mesmo calçando sandálias. O ideal é usar botas de borracha", orienta o médico. Nas mãos? Luvas de borracha também, por favor.

"A bactéria se aproveita para invadir o organismo através de pequenas lesões, às vezes tão microscópicas que a gente nem vê", justifica Diament. Aquele arranhãozinho de nada, aquela rachadura no calcanhar ressecado — tudo serve de entrada. O microorganismo também tem facilidade para penetrar pelas mucosas da boca e dos olhos. Portanto, ao limpar os locais onde a água da tempestade por ventura entrou, nada de levar as mãos até eles.

Quando ocorre a infecção

Ao furar a mucosa ou se aproveitar de uma brecha da pele, a bactéria causadora da leptospirose logo cai na circulação, se espalhando pelos vasos sanguíneos e linfáticos. Daí alcança órgãos como rins, fígado, cérebro e coração, onde é capaz de provocar lesões.

Em cerca de 90% dos casos, porém, a infecção ou é assintomática ou apresenta sintomas mais leves, como febre, mal-estar, dores por todo o corpo e um cansaço de lascar. Os olhos costumam ficar bem avermelhados, como se estivessem com uma conjuntivite, deixando na cara que você está moído.

"Além disso, por causa dessa resposta inflamatória à presença da bactéria no corpo, podem aparecer inúmeros pontinhos vermelhos salpicando a pele e até mesmo as mucosas da boca. Nós os chamamos de petéquias", conta o médico.

Todo esse quadro, que Diament descreve "feito um resfriadão", da maneira como surgiu pode ir embora. Sim, sozinho. E a pessoa, provavelmente, nem sequer desconfiará que teve a leptospirose.

O problema maior acontece quando, em alguns dos indivíduos que nunca tiveram contato com a bactéria, a reação do sistema imunológico acaba sendo exagerada, inflamando os vasos por onde o microrganismo perambula. "Temos, então, uma vasculite", explica Décio Diament.

Essa inflamação dos vasos provoca a liberação do líquido que fazia parte da composição do sangue por diversos tecidos. Por sua vez, a pessoa urina menos."Por isso, o corpo incha, o que já dificulta a respiração e o funcionamento do coração, que pode manifestar arritmias", diz o médico.

Segundo ele, existem pacientes que têm tudo isso e, no entanto, não ganham uma aparência amarelada, no fenômeno que a medicina chama da icterícia, o qual escancara que a bactéria também está aprontando no fígado. Outros, porém, apesar do quadro mais leve, ficam com a pele bem amarela . Aí, podem até confundir a leptospirose com uma hepatite.

Já os casos extremamente graves da doença exigem até UTI, porque há a ameaça de falência de órgãos. E, quando o indivíduo morre — o Brasil registra uma média anual de 375 óbitos pela infecção —, geralmente é por causa de hemorragias nos pulmões e no intestino.

Tem tratamento

Uma coisa você pode tirar da cabeça: casos em que uma pessoa transmite leptospirose para outra são raríssimos. "E, aí, costumam ser de transmissão da grávida para o feto via placenta, algo que é mais frequente em animais", comenta Diament.

Por falar neles, os cães podem ser contaminados da mesma maneira, isto é, pela urina de rato, e desenvolverem a leptospirose. Daí, o nosso contato com o sangue ou com o xixi do cachorro infectado é capaz, sim, de passar a doença. Ao menos, no campo da veterinária, a vacina funciona bem, obrigada.

Para nós, infelizmente, não há imunizante. Falei em dez espécies de bactérias Leptospira provocando a infecção no homem, mas esqueci de contar que são 200 subtipos delas. E até hoje a ciência não encontrou uma vacina eficaz que abraçasse todos.

A boa notícia é que, quando o diagnóstico é feito —"primeiro, por uma avaliação clínica e, se o paciente relata que passou por uma enchente no último mês, com um exame de sangue para confirmar"—, a infecção pode ser tratada com sucesso. A velha penicilina dá conta do recado.

Mas é preciso procurar um pronto-socorro nos quatro ou cinco primeiros dias, no máximo, se notar febre, dores musculares — especialmente nas panturrilhas —, náusea, sangramentos, falta de ar, diminuição do volume de urina, escarro com sangue, pontos avermelhados pelo corpo e, claro, o amarelão da icterícia. Esses sintomas levantam a suspeita de uma leptospirose. E, se for isso mesmo, talvez seja preciso um suporte, como tomar soro, além do antibiótico.

O que não dá é para ignorar o problema. Nem tocar ou pisar com descuido no que ficou molhado e enlameado após um toró daqueles. Afinal, existem doenças que despencam para cima de nós com as chuvas.