De machismo a alto custo: a saga de mulheres para pilotar um avião

Foi uma feira de profissões na escola que despertou em Jessica Rossi Colantonio, 33, o desejo de trabalhar no céu. De uma família que não é da aviação, ela teve que encarar uma jornada de aproximadamente dez anos para alcançar o sonho da infância.

Digo que não foi fácil, pois não tive uma mulher piloto para me inspirar, mas fico feliz por hoje inspirar mulheres a entrarem na aviação. Jessica Rossi Colantonio, pilota de avião

A preparação para chegar ao posto de copiloto da Latam começou em 2012. "Nunca quis ser comissária de bordo, queria comandar a máquina." E foi isso que não lhe fez desistir.

Até ser chamada de pilota pela primeira vez, Jessica teve que trilhar um longo caminho: iniciou o curso de piloto privado, atuou como instrutora de voo, fez o curso de formação como piloto comercial até, enfim, conseguir bater pela primeira vez na porta de uma companhia aérea para pedir um emprego como piloto.

"É difícil emocional e financeiramente. Te demanda muito estudo e dedicação, mas digo para todo mundo que no final vale muito a pena", diz a copiloto que tem licença para operar a família das aeronaves Airbus A320 por cerca de 50 destinos do Brasil e sete da América Latina.

Jessica levou 10 anos para realizar seu sonho e virar copilota
Jessica levou 10 anos para realizar seu sonho e virar copilota Imagem: Arquivo pessoal

"Empresas não contratavam mulheres"

Andrea Martins
Andrea Martins Imagem: Arquivo pessoal

Quem também teve que superar uma série de desafios até ser chamada de pilota foi Andrea Martins, 42. Mesmo com um pai piloto e uma mãe comissária de bordo, ela não escapou do preconceito por querer uma profissão majoritariamente exercida por homens.

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A maior dificuldade que senti para conseguir o primeiro emprego foi quando descobri que empresas de fato não contratavam mulheres, seja pra não pagar dois quartos de hotel nos pernoites, ou até mesmo pelo preconceito de alguns passageiros que não queriam voar com mulheres ou, pasme, as esposas dos passageiros não deixavam. Andrea Martins, pilota de avião

Para vencer as dificuldades financeiras e fazer as horas de voo do curso de piloto comercial, Andrea deu aulas teóricas, fez voos panorâmicos e chegou a tornar-se comissária de bordo.

"Só cerca de cinco anos depois consegui meu primeiro emprego em uma companhia de táxi aéreo, onde fiquei por dois anos antes de entrar para a aviação comercial", conta Andrea.

Com uma rotina "fora da rotina", como ela mesmo brinca, atualmente Andrea concilia o trabalho de piloto na Gol com o de mãe de uma menina de dois anos.

"Acredito que nós mulheres temos dificuldades diferentes dos homens para ingressar na aviação. Existe um preconceito pela nossa cultura e uma estranheza por ainda terem poucas mulheres voando como pilotos", afirma.

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Andrea concilia rotina de mãe e pilota de avião
Andrea concilia rotina de mãe e pilota de avião Imagem: Arquivo pessoal

"Resolvi trocar os tribunais pelo céu"

Ana Laysa
Ana Laysa Imagem: Arquivo pessoal

Desafios que nunca impediram Ana Laysa Lucas Sarmento Nery Dantas, 33, de acreditar no sonho de pilotar os aviões que via parquear nos aeroportos que visitava, ainda criança. O processo levou cerca de 7 anos.

Digo que ser minoria não precisa ser considerada uma condição de restrição. Basta ter em mente que você precisa estar preparado. A dedicação vence qualquer barreira. Ana Laysa Lucas Sarmento Nery Dantas, pilota de avião

Roberta Veran
Roberta Veran Imagem: Arquivo pessoal

Opinião parecida com a de Roberta Veran, 41, comandante da Azul, que trocou os livros e tribunais pelo céu. "Desde a infância, pude acompanhar meu pai na carreira e isso despertou desde cedo esse amor pela profissão. Na época em que terminei o ensino médio, a aviação não vivia um cenário muito atrativo. Por isso me formei em direito e deixei o sonho de ser piloto de lado. Mas quando vi que não me identificava com a carreira no direito, decidi correr atrás do meu sonho e começar do zero", lembra.

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Roberta Veran
Roberta Veran Imagem: Arquivo pessoal

Após passar uma temporada voando nos Estados Unidos, Roberta voltou ao Brasil até ingressar na Azul, onde, hoje em dia, atua como comandante de aeronaves ATR. O processo até esse patamar levou cerca de 8 anos.

Há desafios para homens e mulheres, como em qualquer profissão. Mas acho que os maiores estão dentro de nós. O melhor caminho é sempre o da dedicação, correr atrás do sonho e fazer acontecer. Roberta Veran, pilota de avião

Desigualdade no céu

A desigualdade é comprovada em números. Dados da Oaci (Organização da Aviação Civil Internacional) mostram que mulheres ocupam apenas 5% dos postos de trabalho da aviação internacional —entre pilotos, equipes de manutenção e de controle de tráfego aéreo. Enquanto, os homens representam 95% do total.

No Brasil, essa discrepância é ainda maior. Para se ter uma ideia, dados da Anac (Agência Nacional da Aviação Civil) mostram que, atualmente, o Brasil conta com:

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  • 1.547 mulheres com habilitação válida para pilotar aeronaves
  • 47.500 homens com habilitação para válida para pilotar aeronaves

Ou seja, 96,8% são homens e apenas 3,2% dos pilotos são mulheres.

De olho em frear essa desigualdade no espaço aéreo brasileiro, a agência lançará um programa social em breve, o Asas para Todos, que visa inserir mais mulheres na aviação civil e ajudar aspirantes a pagar os altos custos de formação.

O caminho para ser pilota

  • 1ª etapa: formação como piloto privado

Permite pilotar aeronaves de pequeno porte para fins pessoais, lazer ou transporte de pessoas, mas sem receber remuneração. Horas necessárias: 40 horas.

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Requisitos:

  • Ser maior de 18 anos
  • Exame médico (CMA* de 2ª classe, inclui exame de sangue, radiografias, audiometria e avaliação psicológica)
  • Curso teórico (aulas de teoria de voo, regulamento de tráfego aéreo, entre outras)
  • Aulas de voo
  • Teste de voo
  • No final, aluno faz prova teórica da Anac
  • 2ª etapa: formação como piloto comercial

Permite pilotar aeronaves de pequeno porte de forma remunerada. Horas necessárias: 150 horas

Requisitos:

  • Ser maior de 18 anos (CMA de 1ª classe)
  • Curso teórico
  • Prova teórica
  • Mais aulas de voo
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  • 3ª etapa: formação como piloto em companhia aérea

Permite pilotar aeronaves de pequeno e médio porte em companhias aéreas. Em regra, cada empresa aérea tem seus requisitos, que se somam a outros já exigidos pela Anac. Horas necessárias: 500 horas, mas isso pode variar entre as empresas aéreas.

Requisitos básicos:

  • Inglês avançado
  • Curso de formação para aviões de grande porte
  • Cursos específicos para cada tipo de avião

Requisitos adicionais

  • Certificado Médico Aeronáutico (CMA)
  • Certificado de Conhecimentos Teóricos de Piloto de Linha Aérea (CCT de PLA)
  • Passaporte e visto americano (B1/B2)
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Quando contratado por empresas aéreas, normalmente o profissional começa como copiloto.

Para conseguir as horas adicionais e atingir o montante de horas de voo pedido pela empresa aérea, normalmente, pilotos completam dando aulas como instrutor, pegando aulas extras em aeroclubes ou fazendo voos como freelancer, como pulverizando lavouras.

O custo pode ser um problema, daí a importância da iniciativa da Anac. Segundo pesquisas, o custo estimado de passar por todas essas etapas fica entre R$ 120 mil e 200 mil, e o tempo de um piloto iniciante conseguir um cargo em uma companhia aérea varia de 3 a 8 anos, a depender da companhia aérea e do posto almejado.

*O exame de saúde pericial tem o objetivo de certificar a aptidão física e mental de tripulantes, considerando o exercício de cada função. O CMA (certificado médico aeronáutico) busca limitar o risco à segurança do voo decorrente de problemas de saúde, tendo validade específica de acordo com a classe, função, idade e outras possíveis condições médicas.

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