'Me assumi como mulher trans aos 41 após casamento de 15 anos e 2 filhos'

Alessandra Alferes, 44, musicista, maestrina e professora de música de São Paulo, foi casada com uma mulher por 15 anos quando ainda se apresentava como Alexandre. Eles tiveram dois filhos. Foi em 2021 que ela resolveu contar à ex-mulher que era uma pessoa trans e se entendia como mulher, e não como homem.

A partir de então, começou a sua transição de gênero, fazendo feminização facial, redesignação sexual e contando às pessoas próximas. Sobre preconceito, ela diz que o que mais dói é quando vem de pessoas conhecidas. A Universa, ela conta sua história:

"Fui casada por 15 anos e tenho dois filhos pequenos com a minha ex-esposa. Eu a amava, por isso a pedi em casamento. A minha orientação afetiva sexual enquanto desempenhava um papel de homem era hétero, tinha atração por mulheres; porém, no meu interior, de alguma forma, pensava que minha essência feminina pudesse apenas coexistir ali em nossa vida conjugal.

Viver uma identidade trans em segredo, por 40 anos, é acreditar que em algum momento essa essência irá sumir e tudo estará resolvido. Mas ela não sumirá, é a condição da pessoa, não uma escolha.

Me percebi pertencida ao gênero feminino desde a infância, por volta dos 6 anos; vestia escondida as roupas da minha irmã, e na adolescência usava também algumas peças e acessórios da minha mãe.

Sempre me senti presente neste gênero (feminino), mas nos anos 1980 não havia internet nem como buscar informações sobre a questão trans, então passei toda a infância e adolescência me sentindo um menino 'errado' e muito introspectivo.

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Imagem: Arquivo pessoal

Havia a sensação constante de ser a única pessoa no mundo a se sentir assim, e ela sempre vinha de um jeito ruim. Esse hábito (uso de roupas femininas) me acompanhou durante toda a vida, sobretudo depois que casei, pois tinha minha casa.

Sempre que estava a sós, fazia algo neste sentido, inclusive com maquiagens. Cheguei a comprar algumas peças, depois as descartava com receio da minha ex encontrá-las. A maioria das mulheres trans que conheço relatam esse mesmo hábito; e isso gera uma dúvida de autoconhecimento, não sabem se trata-se realmente de uma identidade, uma essência feminina, ou apenas um desejo intenso de vestir-se com roupas ou acessórios do gênero oposto.

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Vivi uma vida que não queria viver, mas, ao mesmo tempo, o que colhia com essa vida era algo que queria... Só que queria ser mulher também.

Esse despertar veio quando fiz uma reflexão: 'Será que vou morrer e todas as pessoas que amo não vão saber quem eu fui? Eles sempre tiveram na vida deles alguém que não era eu de fato'.

Reação das pessoas após revelação

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Imagem: Arquivo pessoal

Minha ex-esposa foi a primeira pessoa a quem contei sobre minha identidade trans. Foi em janeiro de 2021. Foi bem difícil. A perspectiva de ruptura da relação conjugal (com filhos) foi a primeira grande dor.

Dali, ela saber que o homem com quem estava casada há 15 anos se identificava como mulher, foi um choque. Acho que qualquer pessoa passaria pelo estado de raiva e luto pelos quais ela passou. Era difícil para ela pensar o por que me casei se me sentia assim desde sempre.

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Deixei claro que nunca houve sentimentos falsos, e que sempre a amei. Conversamos muito sobre tudo, e isso a ajudou.

Acho que quando eu e ela compreendemos que a vida não foi justa comigo e nem com ela, conseguimos evoluir juntas e nos entender melhor. Hoje estamos bem, vivemos espacialmente juntas e conjugalmente separadas. Somos grandes amigas, confidentes e nutrimos hoje um amor fraterno uma pela outra.

Minha família me apoiou desde o início. Imagino que tiveram momentos bem difíceis e precisaram de seus tempos, mas sempre me respeitaram e deram suporte. Hoje tenho uma convivência muito mais espontânea com meus pais.

Tenho uma relação ótima com meus filhos (6 e 4 anos) que me chamam de 'mamma'. Quanto as amizades, me reuni com alguns amigos antes da revelação pública, tive o apoio de quase todos eles, somente alguns não consegui mais carregar para minha vida.

O próximo passo foi a realização das cirurgias, fiz minha feminização facial naquele mesmo ano: cinco procedimentos. Em fevereiro de 2023, fiz a redesignação sexual feminizante.

Mas não há uma 'conclusão' da transição, trata-se de algo pra vida. Ela pode envolver procedimentos estéticos ou cirúrgicos, ou mesmo tratamentos hormonais, mas isso depende das aspirações e desejos que cada pessoa trans tem.

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Sem dúvida a saúde mental é o mais importante. Ela relaciona-se com minha maneira de desabrochar enquanto mulher. É sentir-se bem com as próprias expressões, e com as posturas adotadas frente aos desafios e interações sociais.

Sinto-me cada vez mais empoderada como mulher, e todo esse desabrochar me faz sentir segura. A transição é muito mais psicológica, emocional e social, e segue para toda a vida, pois nós, pessoas trans, assim como qualquer pessoa cis, estamos sujeitas às constantes evoluções.

Resistir para existir

Lideramos o ranking mundial em assassinatos de pessoas trans. É muito difícil sentir um puta orgulho em ser trans, e, ao mesmo tempo, saber que minha vida corre risco caso alguém na rua perceba a minha natureza.

Sofri preconceito direto poucas vezes, e todas com pessoas conhecidas, mas recebo ataques transfóbicos recorrentes através do meu canal no YouTube. Aprendi a lidar com isso, e hoje não ligo para comentários de haters.

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Imagem: Arquivo pessoal

A transfobia que vem das pessoas por quem temos carinho é a que mais machuca. Levo alguns dias para me livrar da dor. A gente sofre muito mais preconceito do que as outras letras (LGBTQIA+), não estou desmerecendo a luta dos outros, de forma alguma, mas a comunidade trans é muito mais atravessada pela LGBTfobia, porque a nossa existência é questionada; o mercado de trabalho é mais difícil para nós; sofremos discriminação até para fazer xixi.

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É preciso ensinar a sociedade sobre os mitos relacionados à natureza trans; sobre a desonestidade intelectual que inventou a ideologia de gênero e os banheiros públicos unissex, promovendo pânico moral e relacionando a comunidade trans com assédio e promiscuidade.

Outra ação importante é conscientizar a sociedade de que a essência trans é tão natural quanto a essência cis, hétero, homoafetiva, enfim. As pessoas teriam mais respeito e empatia por nós, e atenuaria aos poucos as transfobias sociais.

Alexandre cedeu lugar a Alessandra

Me revelei publicamente como mulher trans aos 41 anos e foi na hora certa. Não acho que deveria ter iniciado minha transição antes. Minha vida certamente seria outra, não teria conhecido as pessoas que amo. Não teria conhecido a mulher com quem me casei, nem teria tido bebês com ela.

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Imagem: Arquivo pessoal

Acredito que tudo acontece no momento que precisa acontecer, quando atingimos o tempo e a maturidade, e quando as circunstâncias nos fazem reunir toda a coragem necessária. Hoje, compreendo que o verdadeiro privilégio da vida é podermos ser quem realmente somos, mas não somos ninguém sozinhos.

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Foi a vida que o Alexandre construiu que fez a Alessandra ser quem ela é. Sou hoje um conjunto de erros, de sorrisos, de amores e alegrias que somente a vida que tive em segredo poderia me dar.

Ele, Alexandre, cedeu seu lugar a mim, mas é muito amado e está aqui, testemunhando e vibrando com o meu desabrochar. Cresci com ele, mas de forma oculta, e respeitei o tempo dele. A gente foi se construindo na vida, mas ele sabia que estava ali aflorando, porque sempre que o 'Alexandre' estava só em casa, ele trazia a Alessandra para fora, ele se travestia e eu surgia.

Ele saiu de cena e eu assumi o protagonismo da vida, e hoje sou uma pessoa muito mais feliz, pois vivo a plenitude de quem realmente sou."

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