Carta ao pai que não tive

O pai da social media Juliane Correa foi embora quando ela tinha 5. No Dia dos Pais, ela escreve para ele

Juliane Correa Em depoimento a Rute Pina

Pai,

Gostaria de ter tido coragem de te dizer isso enquanto você estava aqui. Mas eu não estava preparada. Sinto muito por você ter me abandonado, abandonado meus irmãos, a nossa vida. É triste saber que você poderia ter sido uma pessoa próxima.

Eu tinha 5 anos. Estava dormindo quando minha mãe abriu a porta, entrou no quarto e disse que você tinha ido embora com outra mulher.

Me disseram que fui bem ligada a você, que era uma relação de muito carinho. Minha mãe contou que você enlouqueceu ao saber que eu seria sua primeira filha menina, a caçula de seis filhos.

Com a separação, tudo mudou. No início, você fazia visitas pontuais, cuja frequência foi diminuindo. Até que nunca mais você veio.

Então minha mãe virou o centro para mim. Depositei toda dependência emocional nela. Foi difícil, por exemplo, sair de casa em 2018. Aos 33, ainda não consigo morar longe dela.

Hoje entendo todas as dificuldades que ela passou para criar os filhos. Foi muito esforço e abdicação. Ela foi pai, mãe, tudo.

Mas sou contra descrevê-la como uma mulher guerreira maravilhosa. Pouco se fala sobre abandono parental e como, vocês, homens, normalizam isso, principalmente nas periferias.

Minha mãe, técnica em enfermagem, precisou estar ausente para conseguir sustentar seis filhos. Ela acordava muito cedo, trabalhava muito, chegava tarde. Estava sempre submersa em questões, tinha que lidar com muita coisa.

Senti solidão. Fui uma criança sozinha. Tive que aprender a ficar só, a me virar. Era uma sensação de vazio.

Aos 7, o vazio começou a me incomodar mais, principalmente quando chegava o Dia dos Pais. Meus irmãos assumiram seu papel. Eles tentavam ser figuras masculinas presentes. Ainda assim, lembro de sentir essa ausência. Datas comemorativas eram difíceis na escola.

Te vi de novo aos 13. Você foi ao aniversário da minha sobrinha. Me tratou como se tivesse me visto no dia anterior. Fiquei revoltadíssima, tive uma explosão de raiva, sabe? Não entendia quem era aquele pai que apareceu do nada. Você queria me dar um celular de presente, porque sabia que eu queria, como se pudesse comprar minha atenção. Mas eu não conseguia expressar isso para você, não tinha maturidade para tanto.

Depois, ficamos mais 10 anos sem nos ver. Era outro aniversário. Eu já tinha criado certa indiferença. Não sentia absolutamente nada. Depois disso, o pouco que eu sabia sobre você era pelos meus irmãos, que tinham mais contato com sua família.

Há quatro anos, meu irmão te ligou. Você já estava idoso e reclamou que ele foi o único filho que te ligou nos Dias dos Pais. Por que eu te ligaria para desejar feliz Dia dos Pais? Para mim, você não foi um pai.

Há pouco tempo meu irmão me mandou uma mensagem dizendo que você havia morrido. Quando soube da notícia, foi estranho. Fiquei triste, chorei. Morreu alguém que me deu a vida. Mas, ao mesmo tempo, pareceu apenas a morte de um conhecido.

Hoje, com a cabeça que tenho, talvez te diria algumas coisas que não tive oportunidade. Como, por exemplo, seu abandono reflete até hoje nas minhas relações. Minha mãe me educou para ser uma pessoa mais dura, que não acredita tanto no amor. Queria ter tido a oportunidade de te contar isso.

E também de te responsabilizar. Você, como outros homens, foi muito pouco responsabilizado por sua ausência.

Talvez, se eu fosse atrás de você, você tivesse me acolhido e entendido. Ao mesmo tempo, não achava justo que eu tivesse que retomar o contato. Este primeiro passo, eu pensava, deveria ser seu. Ficou essa sensação dúbia.

Hoje sei que um monte de coisas que me interessam você também curtia. Agradeço a você por ter contribuído para o meu nascimento, sou tão grata pela vida que nem sei. Entendo a importância da minha família, o quanto a minha mãe é minha referência, o quanto meus irmãos fizeram por mim. Mas, obviamente, isso poderia ter sido mais fácil. Para todos.

E tudo isso porque você decidiu não ter mais vínculo conosco. Não o julgo por talvez querer viver outra história. Mas a maneira não foi correta e você sabe disso. Do fundo do meu coração, o vazio é grande. Falar sobre isso é dolorido. Mas quero dizer que te perdoo. Não sei qual é o caminho da nossa jornada, acredito no propósito da espiritualidade.

Hoje, tenho plena consciência do que não quero ser. Não quero cometer os seus erros

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