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Para fugir de marido abusivo, ela foi morar em porão: 'Estava arruinada'

A escritora e radialista Silvana Coelho, 55, passou 10 anos sofrendo nas mãos de um marido violento - Arquivo Pessoal
A escritora e radialista Silvana Coelho, 55, passou 10 anos sofrendo nas mãos de um marido violento Imagem: Arquivo Pessoal

Maurício Businari

Colaboração para Universa

04/05/2023 04h00

A escritora e radialista Silvana Coelho, 55, casou-se aos 20 para realizar o sonho de formar uma família "ideal", mas acabou sofrendo "os mais variados tipos de abuso" durante os 10 anos em que viveu com o marido, que era alcoólatra e extremamente violento.

Nascida e criada em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, a infância de Silvana foi tranquila. Do pai, descendente de alemães, recebeu uma educação rigorosa, que era equilibrada com a meiguice da mãe, segundo o relato que concedeu a Universa, onde contou um pouco de sua história, que mistura sofrimento e esperança.

"Minha infância foi muito feliz. Eu era a caçula de três filhos e era chamada de 'Poliana' na escola [em referência ao livro escrito por Eleonor H. Porter], porque sempre encarava tudo com muito otimismo. Me formei no magistério e comecei a dar aulas para crianças.

Meu sonho era me casar com um homem carinhoso, trabalhar e ter filhos. Eu queria uma 'família Doriana', como as pessoas costumam dizer sobre os casamentos ideais. Aos 18, conheci um rapaz que se parecia com o que eu idealizava. Educado, gentil, 10 anos mais velho que eu. Apesar de a minha mãe me alertar que havia algo errado com ele, namoramos um ano e meio e nos casamos, meio que contra a vontade dela. Eu tinha 20 anos.

A escritora, no dia de seu casamento, aos 20 anos de idade - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A escritora, no dia de seu casamento, aos 20 anos de idade
Imagem: Arquivo Pessoal

Eu acho que, no fundo, eu também percebia que havia algo de estranho. Ele tinha um ciúme excessivo de mim quando a gente namorava. Quando eu me maquiava, tinha vezes que ele me elogiava. Em outras, ele dizia que eu parecia uma 'árvore de Natal'. Mas eu era jovem demais e achava que aquelas críticas eram porque ele me amava, que o ciúme era normal para um casal que se gosta.

Lua de mel

Já na lua de mel, ele começou a ingerir bebidas alcoólicas, excessivamente. Eu achei estranho, porque antes nem refrigerante ele tomava. Com o passar das semanas, o comportamento foi piorando. Ele me agredia verbalmente, me ameaçava.

Ele me obrigou a pedir demissão da escola. Fomos morar numa casa num bairro afastado, em uma rua sem saída. Ele me isolou. Meus amigos começaram a se afastar, minha família não podia me visitar. Em pouco tempo, ele começou a me violentar sexualmente. Depois, a agredir fisicamente.

Uma vez ele teve um ataque de ciúmes em um restaurante. Quando estávamos no carro, voltando para casa, ele começou a gritar e me socar. Depois, com o carro em movimento, ele abriu a porta do meu lado e me empurrou. Eu fiquei dependurada pelas pernas, fui arrastada no asfalto por vários metros. Foi horrível. Depois disso, ele me deixou trancada em casa por semanas, para que ninguém visse os ferimentos.

Nessa casa eu só chorava, escondida, para ele não ver e me espancar mais. Uma vez meu irmão conseguiu me visitar e me viu toda marcada, eu disse que tinha caído da escada. Um dia tomei todos os remédios para dormir que consegui encontrar nas gavetas. Quase tive uma overdose.

Após dois anos e meio, nossa casa foi assaltada e meu marido decidiu que nos mudaríamos. Fomos para um bairro mais movimentado e, aos poucos, ele foi abrindo a guarda. Eu nunca contei nada para a minha família, pois temia a reação dos meus pais. E achava que poderia ficar ainda pior se meu marido descobrisse que eu tinha contado.

Comecei a trabalhar novamente, como caixa de uma loja de roupas infantis. Eu tinha 26 anos. Comecei a frequentar, sem meu marido saber, as reuniões do Al-Anon, um programa para familiares e amigos de alcoólatras. Em pouco tempo, me tornei gerente, ingressei numa faculdade de turismo e comecei a guardar dinheiro.

Iniciei um projeto de turismo focado nas crianças. Eu visitava escolas e oferecia pacotes de passeios, com foco educativo. Anos depois, meu marido foi diagnosticado com câncer no rim, com metástase de pulmão. Ele teve que parar de beber e de fumar, o que o tornou ainda mais agressivo do que antes. Tive que cancelar vários compromissos profissionais porque eu não podia aparecer de olho roxo.

Óleo fervente

Quando a coisa chegou a esse ponto, tudo se tornou lugar-comum. Eu já não sentia mais nenhuma dor emocional, passei a me comportar de maneira fria. Uma noite, quando eu já tinha 28 anos, ele me pediu para fritar mandioca para ele. Descontrolado, ele chegou perto do fogão e me empurrou, gritando que a mandioca estava estragada.

Depois pegou a frigideira e arremessou o óleo fervente na minha direção. Eu me abaixei para proteger o nosso cachorro, um filhote de poodle, e o óleo bateu e escorreu na parede da cozinha. Era para ter acertado no meu rosto. Foi nesse momento que caí em mim, vendo que eu só tinha escapado de ficar cega ou algo pior para salvar o cãozinho. Naquele momento eu percebi como minha autoestima estava arruinada.

Naquela noite não dormi. Fiquei trancada no quarto com o meu cachorro, ouvindo na mente aquela música do Ivan Lins: 'Começar de Novo'. Daí, me decidi. Não podia mais viver daquela forma. Escrevi uma carta para Deus, pedindo por um sinal. Durante um mês e meio, sem ele saber, me preparei para escapar. Escondi algumas roupas e um colchonete embaixo da cama e, num dia em que ele não estava em casa, chamei um táxi e fugi.

Morando no porão

Fui morar no porão de uma casa, com o meu cachorro. Era o que o meu dinheiro dava para pagar. Eu tinha 30 anos. Nessa época, eu já focava o meu trabalho em grupos de terceira idade. Eu me identificava com a solidão dos idosos. Na época não havia celular, então, imprimi folhetos oferecendo pacotes e, como telefone de contato, colocava o número de um orelhão que recebia chamadas em frente à casa.

Eu colocava uma cadeira na porta e, toda vez que o telefone público tocava, eu corria para atender, como se estivesse atendendo em um escritório: Silvana turismo e eventos, boa tarde! O negócio deu certo, comecei a me tornar conhecida. Fui chamada para presidir o Fundo do Idoso de Petrópolis. Participei como convidada da CPI dos Asilos e isso me trouxe projeção.

Silvana, em frente ao porão onde encontrou refúgio das agressões e reconstruiu sua vida - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Silvana, em frente ao porão onde encontrou refúgio das agressões e reconstruiu sua vida
Imagem: Arquivo Pessoal

Meu marido continuava a me procurar, mas eu nunca informei o endereço para ninguém que ele conhecia. Nossa separação foi litigiosa e tive que pedir medidas protetivas. Minha vida naquele porão pequeno era maravilhosa, eu vivia feliz como há muito tempo não lembrava ser possível. Eu me redescobri.

Depois de um tempo, uma rádio me convidou para ter um programa semanal, que acabou se tornando diário, um sucesso de público. Também apresentei um programa de TV. Passei a fazer eventos, produção cultural e, com o dinheiro que ganhava, mudei para uma casa melhor, mais confortável.

Soube depois que ele havia me dado paz porque se juntou com outra mulher, 20 anos mais jovem. O tempo se passou e um dia ele me procurou novamente, dizendo que os médicos haviam descoberto um tumor no cérebro dele. Que ele teria pouco tempo de vida. A nova esposa o havia largado e ele não tinha ninguém que o ajudasse, além da mãe que havia ido morar com ele.

Mesmo depois de tudo o que ele me fez, eu fui visitá-lo. Ele me pediu que fosse à clínica com ele e, no caminho, começou a me pedir perdão pelas coisas ruins, dizendo que até então não entendia as razões de agir de forma violenta comigo. Eu continuei visitando ele por algum tempo, ajudando a mãe dele.

Quando ele estava no hospital, em coma, senti a necessidade de me despedir. Eu desejava uma ruptura definitiva. Ele morreu segurando a minha mão. E eu me lembrei do que o padre havia nos dito no nosso casamento: 'até que a morte os separe'. Enfim a morte havia nos separado.

Silvana, à esquerda, na rádio e, à direita, apresentando o seu programa na TV local - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Silvana, à esquerda, na rádio e, à direita, apresentando o seu programa na TV local
Imagem: Arquivo Pessoal

A partir daí, eu passei a sentir um alívio muito grande. Aquele problema, aquela sombra do passado, havia literalmente deixado de existir. Hoje escrevo livros, dou palestras sobre abuso familiar para ajudar outras mulheres que, como eu, se viram envolvidas em relacionamentos abusivos e violentos.

Acho que a gente acaba ficando num relacionamento assim porque, além do medo que vem com as ameaças constantes, a gente tem esperança de que a situação pode mudar. Já ouvi muitos comentários me chamando de 'mulher de malandro'. Isso é muito cruel e resume de forma vil o drama de quem vive a violência doméstica.

O isolamento da pandemia me ajudou a refletir sobre o embate que havia dentro de mim, entre a Silvana ingênua, menina, e a Silvana mulher. Eu, já madura, culpava minha versão jovem por ter se permitido viver daquela forma. Mas agora ela está perdoada. Tenho orgulho de quem ela se tornou".