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Achada inconsciente e nua em porta de motel: caso Leila Cravo abalou elite

Leila Cravo na novela "Corrida do Ouro" (1974), da Globo - Divulgação
Leila Cravo na novela "Corrida do Ouro" (1974), da Globo Imagem: Divulgação

Denise Meira do Amaral

Colaboração para Universa, em São Paulo

04/10/2022 04h00

Uma tentativa de feminicídio —até hoje não esclarecida— colocou fim não só na carreira em ascensão da jovem Leila Cravo, aos 21 anos, como também em sua vontade de viver. Se nos anos 1970 a atriz era figurinha fácil nas festas mais badaladas do Rio de Janeiro e nos bastidores da TV Globo, com papéis de destaque nas novelas, além de ser apresentadora do "Fantástico", ela passaria as décadas seguintes imersa na solidão e no ostracismo.

Tanto é que sua morte, aos 66 anos, em agosto de 2020, foi noticiada somente dois meses depois pela imprensa, após postagem de uma amiga nas redes sociais. As lembranças de infância e de adolescência de sua única filha, Tathiana, 44, são as de uma mãe depressiva e ausente. O motivo do estado debilitado de Leila só foi compreendido por ela em julho deste ano, por conta do lançamento do podcast "Leila", narrado por Leandra Leal, com produção da bigBonsai e disponível no Globoplay e Spotfy.

Idealizado por Daniel Pech, o podcast de true crime remonta a história da atriz, encontrada inconsciente no asfalto em frente ao luxuoso motel VIP´s, no Rio de Janeiro, nua e com escoriações pelo corpo, na madrugada de 12 de novembro de 1975. Com grande repercussão pública na ocasião, o caso foi noticiado pela imprensa como tentativa de suicídio, sendo arquivado anos depois.

"Se eu soubesse que minha mãe foi vítima dessa crueldade toda, teria tido compaixão e não raiva, como muitas vezes senti por ela. Minha família nunca contou o que tinha acontecido e eu não entendia por que minha mãe vivia drogada e reclusa do mundo. Depois do podcast, todo o quebra-cabeças se encaixou", contou Tathiana em entrevista a Universa. Ela ainda revela que apesar de já ter ouvido uma coisa ou outra sobre o caso do motel por causa de burburinhos, ela mesma nunca perguntou a mãe e nem foi atrás do que tinha acontecido.

Capa da revista "Amiga TV Tudo"    - Reprodução - Reprodução
Capa da revista "Amiga TV Tudo" menciona a tragédia envolvendo Leila Cravo
Imagem: Reprodução

O crime

Segundo o depoimento do advogado Marco Aurélio Sampaio Moreira Leite, amigo de Leila, eles teriam se encontrado na noite anterior ao ocorrido no Antonio´s, bar frequentado por artistas, políticos e empresários, no Leblon. De lá, foram jantar no motel VIP´s, para relaxar. Chegaram por volta das 22h, pediram comida e duas garrafas de vinho. Ele teria ido embora por volta das 3h e ela ficou sozinha no quarto. Marco Aurélio tinha compromissos na manhã seguinte, ela estava cansada e preferiu dormir por lá e ir embora pela manhã. Ele deixou um cheque e foi embora.

No dia seguinte pela manhã, um taxista teria supostamente presenciado a atriz rolando a ribanceira pela varanda do motel e se chocando contra a avenida Niemeyer. A versão de que Leila teria tentado se suicidar foi amplamente difundida pela imprensa e o caso estampou as principais revistas e jornais da época.

Leila teve vários ossos do rosto fraturados, perda parcial da visão de um dos olhos e traumatismo craniano. Ficou três dias entre a vida e a morte e 11 dias em coma. Acordou no dia 22 de novembro, quando completou 22 anos. Ficou internada por quase um mês.

Quando se se sentiu mais forte para falar, revelou a um repórter do jornal "Última Hora": "Jamais cometeria suicídio". Apesar disso, a versão de que ela teria se jogado é a que ficou consagrada no imaginário popular na época.

A hipótese de que Leila teria tentado se matar também não condizia com os fatos. Ela não teria sobrevivido a uma queda de 18 metros, além do que, não teve nenhum membro como braços ou pernas quebrados. As lesões em seu corpo eram típicas de agressão e tentativa de estrangulamento, de acordo com análises dos médicos do hospital em que Leila foi levada.

Leila Cravo prestando depoimento na delegacia do Rio de Janeiro - Reprodução - Reprodução
Leila Cravo presta depoimento em delegacia do Rio de Janeiro
Imagem: Reprodução

Com medo de represálias e por sofrer ameaças de morte, Leila nunca revelou o nome do criminoso, mas contou sobre a história décadas depois, em entrevista ao livro "Os Motéis e o Poder", de Murilo Fiuza de Melo e Ciça Guedes, e disponibilizada no podcast.

"Ele [Marco Aurélio] combinou com a outra pessoa para ir lá e aconteceu a desgraça: violência sexual e tentativa de assassinato. Essa tentativa de assassinato funcionou socialmente, porque o que me sobrou foi o corpo. A minha alma foi trocada, não tenho dúvidas", desabafou.

Ela ainda revela que ele teria se interessado por ela ainda no Antonio´s, onde tinha ido se encontrar com seu amigo Marco Aurélio, e o criminoso teria ido mais tarde, sem o conhecimento dela, ao motel. "Ou ele estava apaixonado ou com vontade de... E eu resisti", revelou. Somente em 2018, em entrevista ao canal Record, Leila contaria que o homem era um ministro de estado de alto escalão do governo Geisel.

Peixe grande

Apesar de seguir o gênero investigativo, o podcast não revela o nome do algoz. "O inquérito não evoluiu, não teve réu, e ninguém topou falar o nome do mandante. A própria Leila, em entrevistas, não quis revelar seu nome. Como o intuito do podcast é justamente dar voz a ela, que por tanto tempo foi silenciada, respeitamos essa decisão", revela Sara Stopazzolli, roteirista e pesquisadora do podcast. Deborah Osborn, produtora-executiva do podcast e sócia da bigBonsai, conta que a expectativa é que o podcast gere repercussão e consiga reunir novas provas e personagens para que o crime possa ser enfim esclarecido.

Tabus e silêncio

Em entrevista ao jornalista Paulo Sampaio, para a "Revista J.P", em 2015, Leila disse que sua carreira foi "esmaecendo", até que ninguém mais a chamou para trabalhar. "Eu me senti abandonada, solitária, fiquei triste, deprimida. Além do público que te assiste, você sente falta daquele que finge te admirar, mas só quer pegar carona no sucesso. Sãos os falsos amigos. Sumiu todo mundo." A última novela de que participou foi "Sinal de Alerta" (1978), de Dias Gomes.

Tathiana Cravo com os cachorros Penélope e Negresco - Paulo Sampaio/UOL - Paulo Sampaio/UOL
Tathiana Cravo com os cachorros Penélope e Negresco
Imagem: Paulo Sampaio/UOL

Além do envolvimento de poderosos, o preconceito por ela estar em um motel naquela época, ainda mais com um homem casado, foi tanto que muitos se esquivaram em falar para o podcast. "Foi uma história envolta por uma série de tabus. Muitas das melhores amigas da Leila na época não toparam dar entrevista. Elas têm medo até hoje de se associarem a essa história", revela Sara.

Para o idealizador do podcast, Daniel Pech, trazer a história da Leila, para além da denúncia de toda a violência e crueldade, é muito emblemático: "Assim como na época da ditadura, estamos lidando hoje com o mesmo tripé da época: um sistema de violência estrutural, corrupção policial e um governo totalitário. A Leila é vítima da ditadura e de um sistema que fez com que ela fosse silenciada", compara. Daniel ainda lembra que recuperar nosso passado é uma forma de se entender o presente e de se imaginar outros futuros.

Estupros em série

A neta de Leila, a estudante Ana Julia, 18, que dubla a voz de Leila nas reportagens sobre o caso no podcast, conta que, assim como sua mãe, nunca soube exatamente o que tinha acontecido com a sua avó. Ela apenas ouvia as pessoas comentando por alto pela Urca, bairro onde cresceu, que ela teria sofrido um acidente ou que teria tentado se matar. Com o tempo, passou a questionar as cicatrizes que a avó exibia e seu olho mais baixo que o outro. "A gente sempre assistia TV juntas e um dia resolvi perguntar: 'Vó, o que aconteceu?' Ela começou a se abrir, de forma tímida, e falou que armaram uma sacanagem contra ela.

Na conversa, Leila ainda teria revelado à neta ter sido estuprada quatro vezes no decorrer da vida. "Ela me contou como se estivesse falando algo corriqueiro e não como lidando com um crime horroroso. A sociedade diminuiu tanto a sua dor a vida toda, que ela própria passou a olhar para suas feridas como se não fossem nada", desabafa Ana Julia a Universa. "Minha vontade era pegar ela no colo e falar: Vó, ninguém mais vai te chegar perto de você'."

No podcast, a neta problematiza a questão: "Ninguém ter feito nada nada naquela época está custando ao Brasil um estupro a cada dez minutos. Se fizeram isso com uma famosa e nada foi feito, imagina com as mulheres comuns?", questiona.

Leila Cravo com a filha, Thatiana - Arquivo pessoal / Tathiana Cravo - Arquivo pessoal / Tathiana Cravo
Leila Cravo com a neta, Ana Julia, no colo
Imagem: Arquivo pessoal / Tathiana Cravo

Após "Leila" ser lançado, a neta teve acesso a uma série de materiais desconhecidos até então. Entre eles, um vídeo em que sua avó fala sobre sua vontade em voltar a trabalhar e de se tornar escritora. "Não reconheci minha avó. Ela tinha um brilho e uma alegria no olhar que infelizmente não pude partilhar. Esse crime que foi cometido contra minha avó fez com que ela passasse o resto da vida com ódio de todas as pessoas e ainda que minha mãe não tivesse mãe", recorda.

"Ninguém me explicou por que ela era assim"

Tathiana cresceu com os avós, tias e sua mãe, Leila, em um lar desestruturado. Seus dois tios, irmãos de Leila, se suicidaram quando ela era pequena. Ela conta que passou a vida com um sentimento de revolta, de raiva e de injustiça tão grande, sem saber a origem. Após fazer sessões de constelação familiar, entendeu que ela reproduzia os padrões de sua mãe por conta desse silenciamento sistêmico a qual ela foi submetida.

"Entendi muita coisa de mim que desconhecia de onde vinha. Arrastei comigo essa história da minha mãe sem saber. Passei a vida toda me sentindo excluída e com raiva, para reproduzir a história dela, inconscientemente. Ouvir o podcast foi uma sessão de terapia, uma catarse. Vi um espelho meu ali, entendi quem eu era", revela.

Leila Cravo - REPRODUÇÃO/RECORDTV       - REPRODUÇÃO/RECORDTV
A atriz Leila Cravo em entrevista para a Record
Imagem: REPRODUÇÃO/RECORDTV

Tathiana conta ainda que a versão livre e libertina de sua mãe, mostrada no podcast, é nova, já que a imagem que guarda de Leila é a de uma mulher solitária e alheia ao mundo: "Lembro da minha mãe chegando em casa de madrugada, bêbada e drogada, quebrando tudo e gritando com os meus avós. Eu sentia muito medo e me enrolava no edredom. Nunca ninguém me explicou por que ela era assim. Somente após o podcast pude finalmente entender. Não tinha como uma pessoa passar pelo que passou e continuar acreditando na sociedade", acredita.