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'A mãe que expressa raiva da maternidade é tachada de ruim', diz escritora

A escritora colombiana Pilar Quintana - Manuela Uribe
A escritora colombiana Pilar Quintana Imagem: Manuela Uribe

Gabriela Mayer

Colaboração para Universa, de São Paulo

18/06/2022 04h00


A colombiana Pilar Quintana tem feito de seus livros uma reflexão sobre a maternidade. Sua nova obra, "Os Abismos" (ed. Intrínseca) lançada em maio no Brasil é narrada por uma menina, Claudia, que está diante de um momento de crise familiar. A criança tem um olhar atento e minucioso para o comportamento dos pais e a relação entre eles. A mãe, também Claudia, é uma mulher em tensão com seus desejos, com dúvidas sobre o papel de mãe e que parece sufocada pelas expectativas que recaem sobre ela. O pai, um homem mais velho, não entende a necessidade de flexibilizar padrões.

Este é o segundo livro da escritora traduzido no Brasil. O primeiro, "A Cachorra" (ed. Intrínseca), de 2020, fez grande sucesso por aqui. Foi uma história criada no puerpério de Quintana, cujo primeiro rascunho nasceu no celular —ela digitava enquanto amamentava, único momento em que conseguia parar. A obra também traz reflexões sobre o maternar, ao contar a história de Damares, uma mulher pobre e negra, que trabalha como caseira de casas de veraneio no litoral, e que deseja ser mãe, mas não consegue engravidar. A personagem adota uma cachorra e nesta relação há uma longa lista de espelhos, transferências e complexidades. Pilar Quintana pontua que quer tirar a maternidade de um lugar plano. "A maternidade é uma experiência ambígua, como todas", avalia.

Pilar Quintana, escritora - Manuela Uribe - Manuela Uribe
Pilar Quintana, escritora
Imagem: Manuela Uribe

Nascida em Cáli, cidade próxima à costa colombiana no Oceano Pacífico, Pilar Quintana ambienta as histórias nesta região do país. "A Cachorra" tem como cenário a selva tropical no litoral. "Os Abismos" têm a cidade como paisagem, mas o apartamento da família que protagoniza a história é tão repleto de plantas que ganha o apelido de selva. "Eu vivi nove anos na selva colombiana e foi uma experiência que me definiu profundamente", conta a autora. Além de ser parte importante da vida da escritora, a região também ganha destaque em suas obras por ser cheia de complexidades e contrapor as riquezas naturais às profundas desigualdades sociais e econômicas.

UNIVERSA: Em "A Cachorra", há uma mulher que quer ser mãe e não pode; em "Os Abismos", há uma mulher que é mãe, mas talvez não esteja confortável nesse papel. Essas personagens são dois lados de uma mesma moeda?
Pilar Quintana: Sim, ainda que elas sejam partes de universos diferentes. Damares [em "A Cachorra"] trabalha cuidando de uma casa de veraneio na costa e em "Os Abismos" a família vai passar férias em uma casa de veraneio no Pacífico colombiano. Houve um momento em que pensei em fazer esse encontro, colocar como destino da família a casa de que Damares cuidava, mas achei que seria demais. Mas há essa coincidência que é para também mostrá-las como duas faces da mesma moeda. Damares quer de toda forma ter um filho. E em "Os Abismos" você tem uma mulher que é mãe e descobre que talvez não queira isso, que não escolheu esse papel com toda a liberdade.

Esse entendimento da personagem sobre a maternidade vem de um dilema, ela fica dividida entre reconhecer o que sente e repetir o padrão da mãe dela, que também não queria ser mãe. Bem psicanalítico, não?
Exatamente, e acho que essas são algumas das perguntas muito difíceis que a maternidade nos traz. Esses dois livros são a minha reflexão sobre a maternidade.

Ainda existe a ideia de que, se uma mulher vira mãe, ela se realizou na vida, tudo parece maravilhoso. Muitas vezes, quando uma mulher expressa sua raiva, suas frustrações e compartilha os aspectos negativos da maternidade, ela é tachada como uma mãe ruim.

Meus livros são histórias reais sobre a maternidade. Tem momentos em que você tem vontade de sair correndo e ser livre, depois você pensa que seu filho é a coisa mais maravilhosa que já aconteceu, e tudo isso no mesmo dia. A maternidade é uma experiência ambígua, como todas as experiências da vida.

Capa do livro "Os Abismos", de Pilar Quintana - Divulgação - Divulgação
Capa do livro "Os Abismos", de Pilar Quintana
Imagem: Divulgação

Uma vez ouvi você contar que seu filho achava que mãe e mulher eram sinônimos. Como esta e outras experiências da sua maternidade permeiam as mulheres da sua ficção?
Essa foi uma experiência iluminadora porque me escandalizava que meu filho me dissesse que mãe e mulher eram a mesma coisa. Quando comecei a revisar o primeiro rascunho de "Os Abismos" percebi que, de certa maneira, eu, aos 40 e tantos anos, pensava igual ao meu filho, de 3. Notei que via a minha própria mãe apenas como mãe e não como uma mulher completa, um ser humano inteiro.

Os julgamentos com as mães são sempre muito duros, porque elas nunca vão ser perfeitas. Eu tive que examinar a geração da minha mãe, pensar como estas mulheres tiveram muito menos escolhas. Na Colômbia temos leis para o aborto, podemos ter autonomia financeira... Grande parte da geração da minha mãe é como a personagem do livro: foram se dedicar à família porque se supunha que era o que tinham que fazer. Elas tiveram muitos incômodos neste papel, mas não tinham maneiras de escapar, não tinham nem apoio, nem o feminismo para dizer que é normal se sentir assim.

As personagens dos seus livros fazem isso com as leitoras, nos convidam a refletir sobre o julgamento que atribuímos a outras mulheres. Várias vezes nos pegamos julgando as escolhas que elas fazem na ficção.
Sim e acho que parte disso vem porque eu mesma estou refletindo ali sobre o meu papel como mãe. Esse livro me serviu para que eu entendesse que sempre vou ser uma mãe falida. Ou melhor, vou ser a melhor mãe que eu posso e isso não significa ser uma mãe perfeita. Não importa o que eu faça, sempre vou pisar na bola com meu filho. Sou a mãe que eu posso e está tudo bem, porque a nossa tendência é fazer um julgamento muito mais duro de nós mesmas e das outras mulheres do que fazemos dos homens. A minha mãe e as mulheres da geração dela acham nossos maridos maravilhosos porque eles lavam a louça e trocam fraldas.

O bom pai fica sendo esse, que não abandona o filho, lava um prato e troca uma fralda. Uma boa mãe nem sei te dizer o que é, porque é aquela mulher sacrificada, que abre mão de tudo, que não existe senão pelo filho.

Esse é um preço horrível que uma mulher teria que pagar para ser mãe, anular a si mesma.

Autora de "Os Abismos" e "A Cachorra", Pilar Quintana faz reflexão sobre a maternidade - Mariana Uribe - Mariana Uribe
Autora de "Os Abismos" e "A Cachorra", Pilar Quintana faz reflexão sobre a maternidade
Imagem: Mariana Uribe

Tem uma pergunta que nos ocorre ao conhecer as personagens dos seus livros e que também está posta a elas: as pessoas estão destinadas a ser alguma coisa?
Não sei se destinadas em um sentido metafísico, mas com certeza nascemos em um lugar que nos determina. Nasci em Cáli, em uma família de classe média alta e isso, infelizmente, definiu que tipo de escola frequentei e de quais círculos fiz parte. Há muita gente, inclusive, que acha que violei o meu destino, porque virei algo diferente do que se esperava para mim. Eu rompi com esse destino, mas a maioria das pessoas não rompe com essas determinações que vêm com o nascimento. Ou porque não podem, ou porque não querem mesmo.

Eu pude romper porque tinha uma série de privilégios, porque tive um pai que me fez ler muito desde pequena e porque sou rebelde por natureza, mas veja como foi preciso unir muitas circunstâncias para que isso acontecesse.

Qual é a sua relação com a selva, porque ela era a paisagem de "A Cachorra" e agora está metaforicamente em "Os Abismos"?
Eu vivi nove anos na selva do Pacífico colombiano. Foi um momento intenso da minha vida e que me definiu. Cresci em Cáli, uma cidade que tem árvores imensas, um rio que a divide, uma natureza vibrante. Queria que "Os Abismos" fosse um livro que também celebrasse esse aspecto mágico da cidade. Ao mesmo tempo, é um livro que revela um classismo, um racismo e uma imposição às mulheres de uma sociedade muito conservadora. Se você tem alguma dúvida de que o racismo sistêmico existe, é só olhar para lá. A maioria da população, que é negra e indígena, está vivendo na pobreza absoluta. É uma realidade muito dolorosa.

No livro, ficam muito claros dois abismos vividos pelos personagens: a solidão e o silêncio. Você acha que homens e mulheres enfrentam abismos diferentes na vida?
Difícil isso! Eu tenho buscado muito a literatura contemporânea feita por homens em que eles contem sobre suas dores. Não uma coisa que fale da guerra, da sociedade, da política, mas uma literatura intimista, que nos faça saber, por exemplo, como é ser pai, quais as experiências da paternidade.

E você tem encontrado essas narrativas?
Muito pouco. Recentemente descobri uma novela escrita por Tim Keppel, um americano que vive na Colômbia, chamada "Cuestión de Familia" [sem tradução para o português] e fiquei encantada, justamente porque tem um homem que fala das suas angústias, do medo de ficar careca, da sua preocupação com as rugas, da relação com as mulheres sendo um pai solo. Os homens ainda falam pouco de suas dores.

Pilar Quintana - Mariana Uribe - Mariana Uribe
"Esse livro me serviu para que eu entendesse que sempre vou ser uma mãe falida. Vou ser a melhor que eu posso e isso não significa ser uma mãe perfeita"
Imagem: Mariana Uribe

Em "Os Abismos" fica claro que temos muitos abismos na maternidade, e hoje é mais aceitável falar sobre eles. Um dos abismos da mãe no livro é de só poder se colocar nesse lugar iluminado e maravilhoso da maternidade, sem incluir o lado doloroso e desafiador. A maternidade é uma experiência que nos coloca cara a cara com nosso eu mais primário. Nunca senti um amor tão forte quanto o que sinto pelo meu filho e é um amor que me faz enfrentar os meus medos mais terríveis. Sinto que nunca posso estar totalmente relaxada, a menos que ele esteja brincando do meu lado. Se está na escola, fico o tempo todo perto do telefone. Dizendo isso, penso na Claudia, de "Os Abismos", que quer tanto ser diferente da própria mãe, como tantas de nós.

Como tem sido o trabalho que você está fazendo há dois anos de resgatar obras de escritoras colombianas?
O projeto Biblioteca de Escritoras Colombiana, do Ministério da Cultura da Colômbia, nasceu porque muitas delas foram esquecidas. Me dei conta de que tinha um déficit na minha formação literária, porque tinha lido a tradição literária colombiana dos homens, mas não a das mulheres. Neste ano, apresentamos o resultado e os livros das autoras circulam de forma gratuita nas bibliotecas do país. Do total de 18 obras, já fizemos uma parceria com editoras independentes para que 11 delas fossem vendidas nas livrarias.

Capa do livro "A Cachorra", da colombiana Pilar Quintana - Divulgação - Divulgação
Capa do livro "A Cachorra", da colombiana Pilar Quintana
Imagem: Divulgação

Até quando vamos precisar destacar que há uma literatura feita por mulheres?
Cansa, né, porque simplesmente somos escritoras. E estamos sempre querendo rotular a literatura feita por mulheres. Nesse momento acho importante essa afirmação, e mostrar que os livros delas são tão bons quanto os dos homens. A misoginia no meio literário diminuiu, mas ainda ouço histórias de livreiros que me contam terem oferecido "A Cachorra" ou "Os Abismos" a um cliente, e ele ter rejeitado por não gostar do que mulheres escrevem. Você consegue imaginar alguém dizendo "ah, não vou ler Dostoiévski porque ele é homem e não gosto do que os homens escrevem"? É impensável.