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'Sobrevivi à doença do silicone e conto essa história em um documentário'

Ingrid passou pela cirurgia de extração de silicone: "O silicone é um corpo estranho que o corpo não reconhece, é como se o corpo lutasse contra ele mesmo" - Arquivo pessoal
Ingrid passou pela cirurgia de extração de silicone: "O silicone é um corpo estranho que o corpo não reconhece, é como se o corpo lutasse contra ele mesmo" Imagem: Arquivo pessoal

Ingrid Gerolimich em depoimento à Júlia Flores

De Universa

10/03/2022 04h00

"Desde criança entendi que precisava preencher padrões estéticos para ser feliz.

De alguma forma, sei que estou próxima do corpo padrão: sou branca, magra, loira, cisgênero. Mesmo assim, como toda mulher, sempre me cobrei para alcançar um ideal inatingível de beleza. Precisava 'ser escolhida' pelo outro —no caso, por outro homem.

Na adolescência, os meninos diziam para mim que eu não tinha corpo, porque não era peituda. Engraçado isso, né? Eu sabia que tinha um corpo, eu habitava um corpo, só não seguia padrões da 'mulher escolhida'.

Nosso corpo (o da mulher) é para ser visto e desejado. Muito mais um corpo visual do que sensorial, que pode experimentar coisas, esportes, diferentes ações. Meninos são ensinados desde criança que eles devem viver, subir em árvores, pular, brincar; já as meninas, não: elas devem sentar de pernas cruzadas, ficar quietinhas.

É como se o nosso corpo fosse para o outro, e não para a gente. Foi sob essa pressão que decidi colocar silicone.

O implante

Ingrid quando ainda tinha prótese de silicone nos seios - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ingrid quando ainda tinha prótese de silicone nos seios
Imagem: Arquivo pessoal

Quando virei adulta, passei a visualizar outras coisas que eram importantes para mim, além da aparência, mas a insegurança e a baixa autoestima sempre estiveram ali. Eu, por exemplo, não ia com frequência à praia, sentia vergonha de expor meu corpo.

Eu achava que não tinha um corpo desejável quando comparado aos das outras mulheres brasileiras; não sofria preconceito, estava mais no campo do não-desejável

Aos 24 anos, tive um namoro problemático e relacionei o fato de eu ter sido traída ao meu corpo. Todos os problemas de autoestima voltaram mais forte depois do que aconteceu, continuava ligando a rejeição alheia ao meu corpo.

Achava que se eu modificasse meu corpo, eu mudaria de vida. Meus relacionamentos melhorariam, entre outras coisas... E olha só: sempre fui uma mulher 'empoderada', feminista e bem-sucedida —mesmo assim, minha relação com a aparência era algo que me afetava.

Colocar prótese de silicone no seio foi uma decisão muito rápida. Naquela epóca, entre 2010 e 2011, parecia que todas as mulheres na televisão usavam. Entrei na onda.

"Hoje não consigo achar aquilo bonito"

Eu não achava meu corpo 'feio', não era isso. Na verdade sentia que faltava algo. Por causa de toda repercussão midiática, pensava que aquilo era bonito. Hoje, olhando para trás, percebo que esse ideal foi construído pela sociedade.

Da decisão à sala de cirurgia, foi muito rápido. Lembro de pisar no hospital e ainda pensar em desistir. Até aquele momento, não tinha me dado conta de que passaria por uma cirurgia, que me abririam, me cortariam.

Me venderam como um procedimento rápido e fácil; diziam que o silicone era vitalício, que mesmo depois de morta, meu peito continuaria intacto

Passada a cirurgia, demorei algumas semanas para me recuperar mentalmente do processo. O pós-operatório é muito dolorido. Dali em diante, comecei a repensar a minha vida. Me sentia culpada por ter agredido meu corpo.

O explante

Depois de sete anos de prótese, eu tive um nódulo no seio direito. Fui fazer os exames e voltei ao mesmo cirurgião que tinha me dito que o silicone era vitalício. Na hora que me examinou, disse: 'Não posso fazer nada quanto ao nódulo, mas eu recomendo que você troque a sua prótese'.

Questionei ele sobre a promessa de ser algo eterno, e ele respondeu que não era bem assim, que aumentava a chance de ter um problema. Pesquisei a respeito e descobri que a prótese podia romper a qualquer momento. Aquilo me deixou aflita.

Ainda assim, segui com a vida. Até que em 2020 recebi um post de uma menina que tinha feito o explante de silicone. A princípio, achei que era um movimento de aceitação do corpo e contra a pressão estética.

Quando vi o post, aquilo me doeu, não sabia se queria fazer outra cirurgia. Foi um choque grande. Passei a investigar sobre o assunto e descobri a doença do silicone. Entrei em um grupo com cerca de 100 mil mulheres que comentavam sobre suas dificuldades com a prótese.

Lia os depoimentos dessas mulheres e me identificava com a maior parte dos sintomas que comecei a ter após sete anos da cirurgia. Fadiga crônica, problemas de visão, problemas gastrointestinais, zumbido no ouvido.

Nenhum médico conseguia identifcar o que eu tinha, cheguei a receber o diagnóstico de depressão. Diziam que meu problema era mental e não físico.

"Decidi tornar a minha experiência um documentário"

Cenas do documentário "Explante", de Ingrid Gerolimich - Divulgação - Divulgação
Cenas do documentário "Explante", de Ingrid Gerolimich
Imagem: Divulgação

De fato, o silicone é um elemento estranho que o corpo não reconhece —é como se o nosso sistema passasse a lutar contra ele mesmo. Em 18 de novembro de 2020 realizei a cirurgia de explante.

Antes, eu ficava com medo do meu corpo não conseguir se regenerar. Achava que o resultado seria problemático (para não dizer feio), só que não, hoje me acho muito mais bonita.

Feito o explante, resolvi que tinha que contar a minha história e a de tantas outras mulheres. Criei um documentário reunindo especialistas, depoimentos e o meu próprio relato.

O meu objetivo nunca foi dizer para uma mulher o que ela deve ou não fazer com o próprio corpo. Na verdade, a minha ideia é levar informação, que vendo esses relatos elas decidam se querem ou não passar pelo mesmo processo.

Provavelmente eu ainda tenha silicone no meu corpo. Os médicos e cirurgiões diziam que o silicone é um material inerte, mas não é —há vários metais pesados, entre eles a platina. A gente começa a sentir os sintomas aos poucos, conforme a substância vai se espalhando. Diziam que o líquido não pode ultrapassar a prótese, porém estudos já comprovam o contrário.

Eu e as outras mulheres do documentário somos de uma geração que começou a sentir a 'doença do silicone' agora. As mulheres que fizeram o implante nos anos 1990 (em outro 'boom' da plástica) já haviam relatado os mesmos desconfortos com a prótese.

O que mudou é que agora podemos nos unir. A internet, por exemplo, facilita o acesso à informação —claro que não podemos nos esquecer do lado negativo das redes sociais, que é responsável por perpetuar os padrões de beleza.

É importante que falemos sobre isso para termos mais pesquisas sobre o assunto.

O SUS, por exemplo, avalia que a cirurgia de explante é puramente estética e não uma questão de saúde. Isso precisa mudar. Toda a lógica precisa ser revista. A indústria da plástica ainda é muito lucrativa e ninguém quer acabar com ela.

Aos poucos, pretendo levar informação ao maior número de mulher. "Explante", meu documentário, estreiou no último dia 8 de março, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. "

Ingrid Gerolimich, 39 anos, mora no Rio de Janeiro, é socióloga, psicanalista e agora documentarista