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Podcaster atacada por vaga para negras: 'Me chamaram de nazista da África'

Deia Freitas, criadora do podcast Não Inviabilize - Déia Freitas / Arquivo Pessoal
Deia Freitas, criadora do podcast Não Inviabilize Imagem: Déia Freitas / Arquivo Pessoal

Mariana Gonzalez

De Universa, em São Paulo

16/01/2022 04h00

Quando colocou no ar o primeiro episódio do "Não Inviabilize", há menos de dois anos, a psicóloga e roteirista Déia Freitas dependia do auxílio emergencial para pagar as contas — hoje, comanda um dos podcasts mais ouvidos do país.

O formato de histórias curtas, enviadas por ouvintes e contadas em clima de fofoca, que vão do primeiro date a relatos de traições, casos de firma a brigas em família, levou o programa "Não Inviabilize" a ocupar o segundo lugar no ranking dos programas mais ouvidos do Spotify em 2021, com mais de 550 mil ouvintes e 50 milhões de reproduções. Além disso, já há um contrato para as histórias virarem uma série.

Com o sucesso, vieram também os haters. Desde segunda-feira (10), após anunciar uma vaga de assistente de roteiro para ajudá-la na produção dos episódios, Déia passou a ser alvo de ofensas, ameaças e informações falsas. Os motivos, ela acredita, foram, primeiro, o fato de ter restringido a vaga para mulheres negras, pardas e indígenas, o que é permitido por lei; e segundo, pelo valor que serja pago — de R$ 22 mil para quatro meses de trabalho, considerado alto pelos seguidores mais inflamados.

"Fiquei bem assustada. Nunca imaginei que eu tivesse que responder que não sou laranja nem traficante, e que não faço esquema de pirâmide. Fui transformada em uma criminosa", disse. "Me chamaram de 'nazista da África'. Onde já se viu isso?", questiona ela, aturdida em sua retórica.

Nesta entrevista a Universa, concedida ainda em meio a ataques virtuais, Déia conta que vai lançar uma série com histórias de pessoas que tiveram suas vidas transformadas pelas políticas de inclusão do governo Lula (2002-2010), com a participação do próprio ex-presidente nos episódios.

Conta, ainda, como lida com o machismo que aparece na grande maioria dos relatos que recebe: descartando histórias de "homens héteros contando vantagem", naturalizando o "chifre" em cabeças masculinas e fazendo uma breve pesquisa nas redes sociais após receber algum relato de separação, para confirmar se não houve agressão ou perseguição contra a mulher envolvida na história.

UNIVERSA - Como você avalia os ataques que recebeu depois de anunciar uma vaga de emprego, na última semana? O que explica essa reação das pessoas?
Déia Freitas - Acho que o principal fator foi o valor do contrato [de R$ 22 mil para quatro meses de trabalho], mas esse é o valor de mercado. Não estou pagando a mais e nem fazendo favor para ninguém. E, como eu restringi o público [para mulheres pretas, pardas e indígenas], muita gente questionou: 'Como assim eu não posso?'.

Mesmo assim, venho recebendo e-mails de pessoas brancas se candidatando. Além de uns 20 e-mails de pessoas brancas protestando, escrevendo para dizer que não é justo. Eu não estou tirando nada de pessoas brancas, só oferecendo uma oportunidade de trabalho, que não é nenhuma loteria, para pessoas pretas, pardas e indígenas. Eu sei que muita gente precisa de trabalho, mas as pessoas brancas acham que têm mais direito à vaga.

Me chamaram de 'nazista da África'. Se fosse um homem branco, com aquele mesmo texto, pagando o que eu estou pagando, as pessoas falariam: 'Meu Deus, que pessoa incrível'.


De que forma esses ataques te afetaram?

Primeiro eu chorei bastante. Fiquei bem assustada. Nunca imaginei que uma vaga geraria tudo isso. Achei que teria bastante procura, mas não que fosse gerar qualquer tipo de polêmica, muito menos que eu tivesse que responder que não sou laranja nem traficante e que não faço esquema de pirâmide. Fui transformada em uma criminosa. Me senti em um filme. Só estou fazendo meu trabalho, contando minhas histórias, e ter gente dizendo "está estranho isso aí" ou questionando de onde vem esse dinheiro, como se eu não tivesse capacidade de oferecer esse pagamento por um meio lícito.

Neste ano, o "Não Inviabilize" vai produzir uma série com histórias de vidas transformadas pelas políticas do governo Lula, como o Bolsa Família. Teme receber mais ataques por isso?
Acho que vai ter de tudo: a galera que vai curtir e a galera que vai ser contra. Dos bolsominions, se vierem mais ataques, ofensas, não vou responder, só bloquear. Não vou recuar. Hoje atinjo um público muito diverso, tem idosas que escutam na casa de repouso, jovens que se juntam para me ouvir. É importante mostrar os benefícios que aconteceram no governo Lula e que podemos ter de volta. E até para que a gente possa cobrar, porque a ideia é trazer essas histórias e, no final do programa, trazer o Lula para responder: "E aí? Você vai fazer de novo? De que forma?"

Como seleciona os relatos que conta?
Recebo histórias todos os dias, às vezes mais de cem e-mails por dia. Peço que as pessoas coloquem no assunto do que se trata e vou escolhendo por temas -- jogo na busca "corno" ou "traição", por exemplo.

Uma coisa que acontece muito é a pessoa me escrever quando ainda está no meio do furacão: "Déia, peguei meu namorado me traindo há meia hora". Não tenho o direito de invadir a vida dela — nesses casos, deixo a história lá, hibernando, e volto a entrar em contato meses, até um ano depois. Outras vezes, conversando com a pessoa, vejo que ainda não dá para contar porque ela está muito fragilizada. Deixo para contar depois, quando ela conseguir rir daquilo.

Grande parte dos episódios narra situações de machismo, seja sobre dates ruins, traição ou maternidade. Mas você não costuma pontuar isso de maneira tão enfática. Por quê?
Procuro deixar esse machismo transparecer nas histórias de uma maneira mais sutil. Não gosto de ficar militando no podcast, não vou mandar um textão porque, muitas vezes, os elementos da história já dizem muito. Quero que as pessoas entendam que aquele valor que o cara paga de pensão, por exemplo, não está bancando a mulher, mas a criança, que é responsabilidade dele. Como meu podcast alcança jovens em várias cidades, acho importante dizer: "Olha como essa mãe está cansada, como ela faz tudo sozinha". Ou, como faço várias vezes, enfatizar o uso da camisinha. Não adianta ficar falando "use camisinha" porque as pessoas não vão usar, mas quero que elas vejam o que acontece quando não usam, e isso está nas histórias.

Você já disse que já foi cobrada por narrar de forma diferente a traição masculina e a traição feminina. Faz mesmo essa distinção?
Realmente, os homens me cobram por isso. Mas é só ligar no Cidade Alerta para ver quantas mulheres são assassinadas porque o cara desconfiou que elas estavam traindo ou porque quiseram terminar. Não adianta dizer que é igual, porque não é, e não vou tratar igual.

Quero que os homens que escutam meu podcast encarem a traição como uma bobagem, porque chifre todo mundo leva. E quando você encara isso sem vergonha, tirando a pressão que a sociedade coloca sobre, fica mais fácil, porque o homem não tem que provar nada ou ter uma reação violenta.

Quando é a mulher que leva chifre, as pessoas encaram com mais naturalidade, mas quando é o cara tem essa cobrança. "Você não vai fazer nada?". E ele tem que não fazer nada mesmo, só seguir a vida.

Tem histórias que não entram de jeito nenhum?
Tem uns caras que mandam história contando vantagem, de quantas mulheres pegam -- esses eu nem leio, mando para a lixeira. Não me atrai, tenho ranço, não vou contar.

Tem homem que reclama porque a maioria das histórias são contadas por gays, lésbicas e, se forem héteros, é pela perspectiva da mulher. Mas, em geral, o homem hétero e branco de meia-idade não me interessa, a não ser que a história seja muito interessante.

Além disso, quando o homem me escreve dizendo que tomou um chifre, eu procuro saber primeiro se a mulher está viva, se não tem nenhum post falando que o cara agrediu ou está perseguindo ela -- isso tudo pelas redes sociais. Se está tudo trancado e não tem como saber, não conto a história. Não é que eu desconfie de todos os homens, mas acontece. Já aconteceu de eu achar posts que não tinha como saber se ela estava falando daquele cara que me escreveu ou não. Mas, na dúvida, não contei.

No início da pandemia, você dependia do auxílio emergencial do governo. Como o podcast entrou na sua vida?
Eu sou uma pessoa total classe C. Quando chegou a pandemia, eu tinha acabado de sair da área de moda e quem me deu a primeira oportunidade de trabalhar com podcast foram as meninas do "Mamilos". Eu não sabia nada, comecei ali, mas com o que eu recebia não conseguia pagar todas as contas. O que me ajudou foram os R$ 600 do auxílio emergencial. Quando veio a segunda leva do auxílio, eu não precisei mais e tirei meu nome da lista, mas no começo foi muito importante para mim.

Hoje sou roteirista, estou em alguns outros projetos, mas consigo viver das ramificações do "Não Inviabilize" — além dos assinantes e de algumas publicidades, o podcast vai virar uma série, no estilo "Modern Love" [Prime Video], e eu estou escrevendo dois livros.

Quando o "Não Inviabilize" começou, seu rosto ficava escondido dos ouvintes e demorou um tempo para mostrá-lo. Por quê?
Sou uma pessoa muito tímida, me sinto desconfortável aparecendo -- não tenho problema com a imagem, rosto ou corpo, mas não gosto de me sentir exposta e nem de ficar postando foto. Decidi aparecer quando começaram os primeiros boatos de que talvez eu não fosse eu. Por isso resolvi dar um rosto à minha voz. Quando postei a primeira foto, foi desastroso. As pessoas não têm senso e comentavam coisas como: 'Nossa, não imaginava que você fosse assim' e 'pensei que você fosse loira'. Fiquei meio mal. Pensei: 'Poxa, as pessoas não gostaram do que viram'.

Vê racismo nesses comentários?
Com certeza. Imagina: um podcast fazer sucesso e por trás dele não tem uma pessoa branca? O racismo foi escrachado.