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Resisti à ditadura, mudei o cinema brasileiro e sigo na arte aos 83 anos

A atriz e diretora Helena Ignez foi musa do chamado cinema marginal dos anos 60 e 70 e atuou em filmes como "O Bandido da Luz Vermelha" (1968)  - Divulgação/Leo Lara/Universo Produção
A atriz e diretora Helena Ignez foi musa do chamado cinema marginal dos anos 60 e 70 e atuou em filmes como "O Bandido da Luz Vermelha" (1968) Imagem: Divulgação/Leo Lara/Universo Produção

Helena Ignez, em depoimento a Anahi Martinho

Colaboração para Universa

11/12/2021 04h00

"Nasci na Bahia, em Salvador. Vivi lá até os 22 anos. Meu primeiro filme foi "Pátio", o primeiro do Glauber Rocha, que hoje é um clássico. Eu tinha 18 anos. Naquele ano de 1958, nos casamos.

A Bahia era muito efervescente, havia um clima extraordinário. Tinha todos esses músicos: João Gilberto, Caetano, Gil, Tom Zé. Mas todo mundo teve que sair de lá. Todo mundo amando a Bahia, mas não dava para ficar lá.

Era uma sociedade altamente machista, muito provinciana. As mulheres tinham que se comportar de uma forma aprisionada. Eu sentia na pele esse machismo. A minha figura, a imagem com a qual eu trabalhava nesse período, era uma coisa incomum. E uma mulher que sai do comum vai ser visada de todos os jeitos possíveis. Foi nesse período que surgiu a feminista Helena Ignez.

Com 22 anos, me separei. Na época não existia divórcio, fui desquitada. E fui para o Rio em busca de uma vida mais independente. Na Bahia isso era impossível, acho que eu seria apedrejada.

Eu queria agir de uma forma nova, feminista. Ser independente, pensar com a própria cabeça, se não, me aniquilava. Teria virado outra pessoa, se tivesse me deixado subjugar.

Cheguei no Rio e fiz "Assalto ao Trem Pagador" (1962). Foi um sucesso extraordinário, o maior do ano. Nesse período também fiz televisão. Apresentava o programa de domingo na TV Rio, que era anterior à Globo. Recebia no palco Tom Jobim, Vinícius. Fiz coisas históricas no teatro também, com Lina Bo Bardi, Martim Gonçalves. Só o nosso atual Secretário da Cultura que não conhece a Lina Bo Bardi.

Meu trabalho com o Rogério [Sganzerla] começou com o "O Bandido da Luz Vermelha" (1968). Foi aí que eu rompi com o cinema clássico ao qual eu pertencia e entrei nessa história do cinema experimental.

Depois veio "A Mulher de Todos" (1969), que é um marco feminista. Esse título é uma ironia total, ela na verdade é mulher de ninguém. Essa personagem causou um efeito nas pessoas que até hoje não sei explicar. Todo mundo fala de uma forma linda do filme, principalmente as mulheres. Eu não esperava que isso fosse tão profundo, mas vai ali na identidade da mulher. Era a revolta. Na época se matava as mulheres livres. Matavam em nome da honra, que coisa vexaminosa. O machismo é vexaminoso, essa é a verdade.

Helena Ignez em 'A Mulher de Todos' (1969) - Reprodução - Reprodução
Helena Ignez em 'A Mulher de Todos' (1969)
Imagem: Reprodução

E esses são os primeiros filmes, com essa mão extraordinária de Rogério. Ficamos juntos logo depois. Nessa época era uma loucura total o Rio de Janeiro. Em 1970, fomos para Londres e aí tudo mudou, fui entendendo que eu amava Rogério. Estávamos sozinhos e eu amava ele.

Dois anos depois, tive minha primeira filha com ele, a Sinai. Passei três anos fora do país, depois fiquei mais um tempo isolada na Bahia. Nessa época a ditadura já tinha se mostrado muito forte, os filmes estavam sendo censurados, ninguém queria se arriscar. Nesse período, o Rogério pesquisou sobre Orson Welles. A ditadura veio em cima profundamente da obra dele. Era muito difícil para ele trabalhar, então tivemos esse período em off.

A ditadura foi horrorosa, pior do que agora. Era militar, né. Ninguém tinha coragem de mexer em nada porque estava mexendo com os militares. Não dá para comparar com agora. Morreu muita gente. Por outro lado, hoje temos um extermínio dos povos indígenas, é pavoroso. E uma pressão muito forte sobre os gays, os trans, os negros, as mulheres.

Resistência e desbunde

A ditadura empurrou para um desbunde, obrigou toda a gente de bem a se revoltar contra aquilo de uma maneira ou de outra. O desbunde foi uma forma de resistência, não foi só a luta armada. Acho que é isso que temos que encontrar, a saída é essa.

A questão do machismo está mudando. Existe uma resistência muito grande dessa nova geração. As mulheres que estão com 30, 40 anos, não se deixam mais abater por coisas como essa obrigação de ser mãe, por exemplo. É uma geração fortíssima. Mas tudo começou lá com a gente, em 1968.

A Heloísa Buarque de Hollanda é a grande feminista da minha geração. O livro dela "Explosão Feminista" é absolutamente extraordinário.

Arte continua forte

Djin Sganzerla em cena de "Luz nas Trevas - A Volta do Bandido da Luz Vermelha" - Divulgação - Divulgação
Djin Sganzerla em cena de "Luz nas Trevas - A Volta do Bandido da Luz Vermelha"
Imagem: Divulgação

Meu trabalho como diretora surgiu naturalmente, quando o Rogério teve câncer e ficou oito meses sem poder trabalhar, imóvel numa cama. Aí eu resgatei dez anos de trabalho dele, com "Luz nas Trevas". Com a morte dele, em 2004, eu vi aquela preciosidade nas minhas mãos e falei: 'não vou impedir que isso seja visto. Vou me cercar do que eu puder para levantar esse filme'. E foram três anos assim, tive uma produção muito digna para fazer esse filme.

Foi maravilhoso, tinha cem pessoas no set, foi marcante. Mas antes eu já tinha feito "Canção de Baal" (2007), com um elenco maravilhoso: Simone Spoladore, Carlos Careca, Djin Sganzerla, minha filha. Aí as pessoas passaram a acreditar mesmo em mim, o filme inteiro era meu. Ganhei prêmio de melhor roteiro adaptado.

Isso foi em outro período do Brasil, com Lula presidente e Gilberto Gil ministro da Cultura. A arte era forte, prestigiada por eles. Agora ela continua forte, mas está recebendo pedradas, todo dia é uma pedrada.

Mas vejo um futuro bom para a arte brasileira. Ela está bem, apesar de toda amarrada desse jeito. A gente tá se saindo, tem coisas aparecendo, estamos nos manifestando. O cinema tá levando uma pedrada horrorosa, mas continua resistindo.

Teve uma grande aceitação o "Marighella", dirigido pelo Wagner Moura. Gosto do filme, acho que ele é claro e honesto. Ele não engana. Não tenta se passar por filme de arte, por cinefilia. Essa é a honestidade dele. Ele fala ao público. E encheu os cinemas, o que é bom.

Em 2007 recebi uma homenagem extraordinária na Suíça. Acompanhei também uma homenagem na Nova Zelândia, onde "O Bandido da Luz Vermelha" foi considerado um dos 50 melhores filmes do século 20. Existe um despertar desse trabalho feito no Brasil, nós é que não falamos nisso. Teve também uma mostra chiquérrima em um cinema cult de Nova York. Mas é aquilo: jamais poderemos competir com a televisão, com a grande mídia, com os streamings.

Cheia de trabalhos

Meu filme mais recente como diretora foi "Fakir" (2020). E fiz um filme de pandemia para o Instituto Moreira Salles. Tive a honra de ser convidada pelo Kleber Mendonça Filho. É um curta de cinco minutos, muito lindo, feito aqui em casa, comigo fazendo uma performance e ele dirigindo. Chama "Fogo Baixo e Alto Astral", com a fotografia do André Guerreiro Lopes, meu genro e grande parceiro artístico.

Estou cheia de trabalhos. Estou ensaiando um filme com o Evaldo Mocarzel, chama "Viveiro de Vozes", comigo e a Vera Holtz. É o filme mais estranho de toda a minha vida. É uma proposta muito cabeça. Eu gosto.

E tem o "L.O.R.C.A.", do André [Guerreiro Lopes], que estreia dia 10 de dezembro no YouTube. É um trabalho experimental, lindíssimo. De alguma maneira se conecta com esse livro que foi lançado agora, "Helena Ignez, Atriz Experimental", do Pedro Guimarães, que é um acadêmico brilhante, junto com o Sandro de Oliveira.

Helena Ignez e Ney Matogrosso em set - Divulgação - Divulgação
Helena Ignez e Ney Matogrosso em set
Imagem: Divulgação

Estou trabalhando num roteiro sobre a sexualidade feminina, chamado "A Alegria é a Prova dos Nove". O título é de Oswald de Andrade, faz parte do Manifesto Antropófago. Me baseei na sexóloga americana Betty Dodson. Ela fazia workshops de masturbação, dizia que a mulher deveria conhecer o seu prazer e assim seria mais livre para escolher um companheiro.

É um filme queer com um humor extraordinário, atrizes maravilhosas com quem já trabalhei muito e o Ney Matogrosso. Tem também o personagem do Negro Léo, que é um padre canabista, inspirado no padre Ticão. É linda a história desse padre. Não sei se Deus é maconheiro, mas por essa planta passou a saúde.

Hoje moro só. Vivo em São Paulo desde 2001. Vim para fazer uma peça, comprei um apartamento e fiquei. Tenho três filhas, a Djin e a Sinai, com o Rogério, e a Paloma Rocha, com o Glauber.

Na Wikipedia tem uma biografia minha que é totalmente louca, inclusive me tiraram três anos de idade. Quero retificar: nasci em 1939. Tenho o maior orgulho de ter 83 anos e espero ter muitos pela frente. Ainda há muito a fazer."

Helena Ignez, 83 anos, é atriz e cineasta