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Mulheres protagonizam um mundo em evolução


Em Veneza, diretora pede que foquem em sua obra e não no fato de ser mulher

A diretora Shannon Murphy no Festival de Veneza - Alberto Pizzoli/AFP
A diretora Shannon Murphy no Festival de Veneza Imagem: Alberto Pizzoli/AFP

Flavia Guerra

Colaboração para Universa, de Veneza

07/09/2019 04h00

Se há uma pergunta que a diretora australiana Shannon Murphy está cansada de responder é se sente confortável com o lugar que as mulheres ocupam na indústria cinematográfica e nos festivais de cinema do mundo e se é uma luta diária produzir filmes sendo mulher.

"Para ser honesta, difícil é responder sempre essa pergunta sobre ser mulher cineasta. Principalmente, porque isso tira atenção do produto artístico que queremos fazer e reforça a mitologia do grande homem diretor e seu processo poético e criativo, enquanto a gente tem que falar sobre o esforço que fazemos e o quanto é difícil produzir cinema", diz a diretora de "Babyteeth", um dos mais festejados filmes em competição no Festival de Veneza 2019, que entrega seus prêmios na noite deste sábado (7).

Com seu pungente longa sobre uma garota que tem câncer e busca o primeiro amor, Shannon é uma das duas únicas mulheres a competir pelos principais prêmios do evento neste ano. Novamente, entra em pauta muito mais ser uma das diretoras em competição, ao lado da saudita Haifaa Al-Mansour, de "The Perfect Candidate", do que a discussão sobre sua obra que tem sido apontada como um dos melhores longas pela imprensa internacional e pelo público.

"Devemos discutir nossas obras, o conteúdo delas, o que queremos contar. Mas também devo dizer que, para mim, não é nada difícil ser mulher e diretora, pois na Austrália temos um programa incrível governamental, chamado Free Screen Australia, em que gênero importa", explica a cineasta.

"A gente começa do zero. E eles têm programas de mentoria para mulheres e incentivam produtoras a ter uma porcentagem de 50% de mulheres chefes de departamento. Há mulheres líderes em todos os cargos. E é aí que a mudança acontece. Estão acontecendo na Austrália", diz a diretora, que, com "Babyteeth", dirige seu primeiro longa depois de uma carreira prestigiada no teatro e nos curtas-metragens.

Mas Shannon fez questão de pontuar que a conversa sobre a participação feminina no mundo do cinema é importante, dependendo do contexto. "Temos de fazer isso em debates e seminários sobre a questão, claro. Já em outras situações não, pois ofusca a discussão em torno de cada filme feito por uma mulher."

Uma igualdade ainda distante

As afirmações de Shannon casam perfeitamente tanto com a posição do diretor do festival, Alberto Barbera, quanto com a da presidente do júri deste ano, a cineasta argentina Lucrecia Martel. Ao ser questionado sobre por que havia somente dois filmes dirigidos por mulheres entre 21 longas selecionados para a competição oficial, Barbera afirmou que o critério é somente a qualidade dos filmes, e não as cotas. Para ele, a mudança para que mais longas dirigidos por mulheres sejam selecionados deve ocorrer em uma etapa anterior ao evento. Ou seja, deve partir de educação, mercado, entre outros setores.

Dos filmes inscritos no Festival de Veneza, 24% foram dirigidos por mulheres. Mas na competição, os dois selecionados configuram apenas 12% do total. Barbera, pouco tempo antes, havia defendido que 75% dos funcionários do festival são mulheres e que tem trabalhado para aumentar a paridade em todas as áreas.

Infelizmente, nas telas, não é o que se vê. Na mostra paralela Orizzonti, 21% dos filmes tiveram direção feminina, enquanto na mostra Sconfini a porcentagem foi de 12,5%. Nas sessões não competitivas, 26 % dos títulos foram dirigidos por mulheres.

Para apontar alguma mudança de fato, Barbera observou que metade dos curtas que compuseram a seção Horizons foi dirigida por jovens diretoras, num sinal de que algo estaria mudando nas novas gerações.

Lucrecia Martel provocou: "Se vocês estão fazendo assim há 76 anos, por que não arriscar e mudar somente por um ano? Por que não ousar?"

Lucrecia também cutucou Barbera ao afirmar que não iria ao jantar de gala em homenagem a Roman Polanski, apesar de ser a favor de que o novo filme do diretor polonês, "J'Accuse", fosse selecionado para a competição, por suscitar debates importantes. Polanski vive à sombra de uma acusação de estupro que teria cometido décadas atrás. A argentina afirmou que não consegue separar a obra do homem.

Dito isso, muitos apostam que é quase impossível que "J'Accuse" leve algum prêmio na noite de sábado, quando os Leões (de Ouro, para melhor filme, e de Prata, para melhor direção) serão entregues.

De olhos bem abertos

Já a jovem Eliza Scanlen, protagonista de "Babyteeth", tem grandes chances de levar a Copa Volpi de melhor atriz e marcar novamente a carreira da produtora australiana Jan Chapman. Além de "Babyteeth", Chapman produziu "O Piano", de Jane Campion, única diretora até hoje a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes.

"Produzi muitos filmes dirigidos por mulheres na minha carreira. E quase todos foram selecionados para grandes festivais. O programa que estamos desenvolvendo na Austrália é incrível. A gente tem seis ou sete filmes dirigidos por mulheres para estrear no país. Vejo com olhos muito otimistas a forma como o mundo tem se aberto para o trabalho das mulheres e está entendendo o quão incríveis as cineastas são", diz Chapman.

Se, na noite de sábado, o júri presidido por Lucrecia Martel der um dos principais prêmios para Shannon e "Babyteeth", os olhos do mundo vão se abrir ainda mais, o debate se ampliar e, quem sabe, o modelo australiano poderá inspirar mais países a investir no talento das cineastas. Então, talvez, Shannon nunca mais tenha de responder a essas perguntas nos festivais de cinema.