Topo

Tamara Klink: 'Toda mulher deve passar pela experiência de viajar sozinha'

Aos 24 anos, Tamara está atravessando o Oceano Atlântico sozinha - Arquivo pessoal
Aos 24 anos, Tamara está atravessando o Oceano Atlântico sozinha Imagem: Arquivo pessoal

Júlia Flores

De Universa

13/10/2021 04h00

Quando Tamara Klink decidiu cruzar o Oceano Atlântico sozinha, seu pai — o navegador Amyr Klink — negou-se a emprestar um barco para a filha. "Ele não me deu nem um centavo, disse que eu tinha que me virar", conta a navegadora e arquiteta de 24 anos, por telefone, do porto Mindelo, em Cabo Verde, onde está atracada há mais de uma semana.

No dia 30 de setembro, a navegadora publicou um vídeo no Instagram com os bastidores do percurso até Mindelo. "Chegou a hora de admitir que errei o caminho", comenta na filmagem. Aquela seria a primeira vez de Tamara em terra firme após dias no mar. "Eu até tinha penteado o cabelo para essa chegada", brinca. A calma que ela exibe para as câmeras é de família, sabemos, mas está sendo testada desde o dia em que a jovem arquiteta deixou a costa francesa em direção ao Brasil a bordo de seu próprio barco, o "Sardinha".

"Esta viagem está me ensinando a lidar com imprevistos. Precisei aprender a ter calma. A cada milha navegada, a cada avaria, a cada peça quebrada, mais eu cresci. Na terra, a gente pode sempre pedir ajuda. No meio do mar, não: estou sempre sozinha", comenta. "Quer dizer, não estou sempre sozinha. Tem pessoas me acompanham à distância."

Além dos profissionais que monitoram o barco de Tamara, a navegadora também está se referindo a milhares de pessoas que seguem o "Sardinha" via internet. Nas redes sociais, ela criou a campanha "#LongeJuntas" para compartilhar conteúdos sobre a viagem e desmistificar o mito de que enfrentar o mar é para homens. "Não se espera que uma menina que sorri — e usa salto alto — cruze o Oceano, mas aqui estou eu". A seguir, ela fala mais sobre o assunto:

UNIVERSA - Seu pai é um dos navegadores mais famosos do Brasil e do mundo. Ainda assim, ele se negou a te emprestar o barco e o dinheiro necessário para fazer esta viagem. Em algum momento você sentiu que "não daria conta" de atravessar o Atlântico sozinha?

Tamara - Sim, eu mesma não estava segura da minha decisão, mas me preparei para ouvir os nãos mais dolorosos. Meu pai foi o primeiro a dizer um "não". Cheguei a ouvir da minha mãe que eu não sabia navegar. No início foi frustrante. Mas, de certa forma, eles me deram a liberdade para eu fazer meu próprio caminho. Usei essas negativas como motivação.

Não se espera de uma menina que sorri e que usa salto alto consiga ficar tanto tempo sozinha em um barco

Ainda assim, imagino que seu pai e sua mãe, Marina, serviram como grande inspiração para você, certo?

Graças a eles tive o privilégio de ter acesso ao mar desde criança, com minhas duas outras irmãs: Laura e Marina Helena. Digo que minha mãe foi uma figura muito importante na nossa formação, foi ela quem construiu uma base sólida de valores para que a gente pudesse partir. Já aquele primeiro empurrãozinho para cair no mundo veio do meu pai. Vejo que essa minha viagem está ajudando os dois a reorganizarem o tabuleiro da vida, principalmente mamãe, ela está vendo que eu cresci e saí do ninho. É lindo ver que, de certa maneira, a minha travessia está ajudando na travessia de pessoas ao meu redor.

Você chegou a ouvir comentários machistas questionando a sua capacidade de navegar?

Quanto a esta viagem, não. Eu realmente não tinha muito conhecimento de navegação, nunca tinha manobrado um barco. Mas eu tinha um sonho e fui atrás. Recebi o e-mail de um seguidor do meu canal do Youtube. Era o Henrique. Ele me apoiou, acreditou no meu sonho, me emprestou dinheiro para comprar o barco e me ajudou com a viagem. Logo que consegui o "Sardinha", só ele e minha avó sabiam que eu ia atravessar o oceano. Tinha medo de que duvidassem de mim.

Tamara e seu barco "Sardinha" - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Tamara e seu barco "Sardinha"
Imagem: Arquivo pessoal

Após o anúncio da viagem, você criou a campanha "Longe juntas". Por que você usou a frase no feminino e não no masculino (longe juntos)?

Por várias razões. Tenho certeza de que só navego hoje porque muitas mulheres abriram caminho para que eu fizesse isso. Somos recentes na história da navegação. Há pouco tempo só tínhamos imagens de mulheres acenando no cais, despedindo-se dos maridos que iam viajar. Ao ler sobre história das expedições, conclui que a navegação sempre foi associada à virilidade, à força física, a atributos masculinos. Parecia que os homens que iam ao mar estavam sempre tentando provar que eram mais fortes do que os seus pares. Como uma mulher, que a princípio era mais frágil do que eles, poderia suportar situações que homens muito bravos tinham dificuldade de enfrentar? Queria mudar isso, por isso decidi criar a hashtag Longe Juntas.

Quando uma mulher alcança um feito, ela abre caminho para que outras também o façam

Estamos acostumadas a ver, na literatura e nos filmes, figuras masculinas associadas à navegação, seguindo aquele estereótipo de que só o homem sabe lidar com a solidão do mar. Isso está mudando?

Exato, temos aquela imagem do homem abandonando a família, enfrentando o medo, atravessando o oceano. Recentemente as mulheres começaram a fazer parte das expedições, principalmente porque muitas delas são cientistas. Com o tempo, acho que fomos vendo mais pessoas do sexo feminino no meio, mas até hoje sinto dificuldade de encontrar roupas de navegação para mim, por exemplo.

As pessoas se assustam quando veem que é uma mulher navegando sozinha?

Elas se surpreendem. Mas eu não gosto de passar a imagem de super heroína. Tento me aproximar de uma mulher "comum". Eu não sou fora da curva, não sou super forte, eu menstruo, faço necessidades igual a todas as outras. Se estou viajando sozinha, outras mulheres também podem fazer o mesmo. O mais importante é conhecermos os limites dos nossos corpos, conhecer muito bem nosso sono, nossa resistência. Quando estou de TPM, por exemplo, evito tomas decisões arriscadas porque sei que não estou na minha melhor condição física. Conhecer o seu corpo é fundamental, isso inclui levar em consideração eventos físicos.

Como você se preparou fisicamente para a viagem? Foi difícil?

Fiz ioga, musculação e criei um plano alimentar especifico para a viagem. Hoje, para mim, é mais fácil lidar com os limites do meu corpo quando estou no mar. Na terra, eu acabo cedendo muito mais às demandas, solicitações que chegam quando estou sempre disponível. Preciso responder e-mail, dar atenção para a família, recebo cobranças emocionais. Para mim, a chegada é o oposto do descanso. Preciso me reacostumar a dormir por 8 horas seguidas; no mar, eu tenho que acordar de 30 em 30 minutos para ter a certeza de que não vou morrer.

E emocionalmente? Você faz acompanhamento com psicóloga?

No ensino médio tive depressão e a terapia me ajudou a me restabelecer, me ensinou a como reagir melhor ao estresse, além de me ajudar a planejar meu plano de vida. Continuo fazendo até hoje. Ao meu ver, o processo terapêutico não vai substituir a experiência que eu estou vivendo hoje, ele só me fortaleceu para que eu tomasse decisões mais assertivas.

Todas mulheres deveriam fazer esse experimento de viajar sozinha, que é quando a gente se dá conta que podemos ir mais longe do que pensamos — e do que esperam de nós

Tamara Klink se prepara para lançar dois livros - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Tamara Klink se prepara para lançar dois livros
Imagem: Arquivo pessoal

Apesar de toda essa preparação, suponho que, em alguns momentos, você sinta falta de companhia, né?

Sim, em vários momentos me sinto muito solitária. Convivo com a solidão e com a solitude, mas procuro ver isso de um jeito que seja positivo e generoso, pensando que é um privilégio estar em um lugar sem ser contatada por ninguém, onde eu passo dias olhando para o nada. Poucas pessoas têm essa experiência na vida. Sinto constantemente falta de carinho e de pessoas. Estou sempre exposta a situações para quais os humanos não foram feitos, tenho rotina reduzida de sono, fico exposta à água salgada, ao sol, estou constantemente em deslocamento. Estou sempre fora da minha zona de conforto. No final, é a solidão me faz companhia. Sinto falta da minha avó, por exemplo, tento usar isso como pretexto para escrever. Os maiores desafios da viagem estavam ligados à calmaria, e não ao mau tempo. Por exemplo, dias sem ventos, em que eu fico parada, são muito frustrantes para a mente, as distâncias vão parecendo maiores, você começa a contar comida, espera que seja suficiente.

Sua chegada está prevista para o começo de novembro. E depois, o que você pretende fazer? Planeja criar algum projeto social de empoderamento feminino?

Sim, vou lançar dois livros. A pré-venda deles começa no dia 18. Um é de poemas, sobre crescer, ir atrás de sonhos, mudar de país e ser uma versão constantemente traduzida de si mesmo. Morei um tempo na França, onde fiz um curso de arquitetura naval. O outro é o "Mil milhas", um diário de viagem sobre como foi trazer o o barco da Noruega para França.

Não pretendo criar nenhum projeto, porque hoje dou força e suporte para aqueles que já existem. Quando eu pisar no Brasil, quero dar um abraço na minha avó e conhecer meus fãs, as "sardinhas" que fazem parte desse cardume.