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Na poesia, Ana Martins Marques vê 'alívio para momento marcado pela morte'

Uma das principais poetisas da atualidade, a mineira Ana Martins Marques lança "Risque esta palavra" - Divulgação
Uma das principais poetisas da atualidade, a mineira Ana Martins Marques lança 'Risque esta palavra' Imagem: Divulgação

Júlia Flores

De Universa

28/09/2021 04h00

"Alguns poemas
nos tiram as palavras
que nos dão
O mais belo poema
da língua (já se disse) é:
pode me emprestar
o fogo?"

A estrofe citada acima pertence a "Prometeu", um dos (quase) 60 poemas que compõe "Risque esta palavra", o mais recente livro lançado pela poetisa Ana Martins Marques. A autora, uma mineira de 39 anos, consagrou-se como uma das principais autoras brasileiras da atualidade depois das obras "Da arte das armadilhas", vencedor do prêmio da Biblioteca Nacional em 2011, e "O livro da Semelhança", publicado há 6 anos e terceiro lugar no prêmio Oceanos.

De lá para cá, Ana lançou novas obras e conquistou ainda mais fãs. "Risque esta palavra", o mais recente trabalho de seu portfólio, foi parcialmente escrito e lançado durante a pandemia de covid-19 e traz, entre outras despedidas, o seu relato pessoal sobre abandonar o vício de fumar.

Em entrevista a Universa, a autora fala sobre o assunto. "O que me motivou foi possivelmente o que motiva todo mundo que um dia decide parar de fumar: medo de morrer", disse. Confira esse e outros trechos da conversa a seguir:

UNIVERSA: Você é considerada uma das principais poetisas brasileiras da atualidade. Como lida com o título?

ANA MARTINS MARQUES: Fico obviamente feliz com o reconhecimento do meu trabalho. Para quem escreve, ser lido, ver seus textos circularem e receberem a atenção de leitores é sempre uma alegria. Mas acho que títulos assim, ou rankings de qualquer tipo, não fazem muito sentido na literatura.

Lembro de um trechinho do e. e. cummings em que ele diz que é com rosas e locomotivas que seus poemas competem. E ele ainda completa: "Eles também competem uns com os outros, com elefantes e com El Greco".

A literatura (principalmente a poesia) exige concentração e foco que parecem contrastar com a era digital. De fato, as pessoas estão lendo cada vez menos. Isso frustra?

Não tenho muita certeza em relação a essa afirmação de que "as pessoas estão lendo cada vez menos". Talvez os modos de ler e até a compreensão do que exatamente significa ler estejam em transformação.

Certamente o modo de leitura preponderante hoje é mais difuso e fragmentário, menos concentrado. Salta-se de um texto para o outro rapidamente, frequentemente o texto vem acompanhado por materiais visuais, sejam fotos ou vídeos, e a escrita e a leitura estão extremamente imbricadas. Existe uma transformação em curso nos modos, no tempo e nos suportes da leitura, e acho importante procurar entender essa mudança em lugar de apenas lamentar as perdas.

Confesso que sinto falta muitas vezes da minha própria capacidade de concentração, de passar muito tempo dedicada a um único texto, uma coisa que hoje me parece muito difícil. Nesse aspecto é um pouco frustrante, sim.

Livro "Risque esta palavra", nova obra de Ana Martins Marques - Divulgação - Divulgação
Livro "Risque esta palavra", nova obra de Ana Martins Marques
Imagem: Divulgação

Você, em outras entrevistas, disse que a poesia "pode dar forma à nossa perplexidade". E quanto a isso: a poesia também dá forma a ela? E quanto à ideia de alguns de que mulheres seriam mais complexas do que homens?

Complexidade também cabe! Em relação à questão do gênero, sinceramente acho que não. Pessoas são complexas.

"Risque esta palavra" acabou de chegar às prateleiras e foi lançado durante a pandemia. É um livro que fala sobre perdas, despedidas, lutos. Como você acha que a poesia nos ajuda a atravessar um momento como este?

De fato, "Risque esta palavra" foi escrito em parte durante a pandemia, e acho que o livro acabou ficando bastante marcado pela morte e pelo luto. Não sei se a poesia ajuda a atravessar tempos como estes.

De modo geral, não vamos encontrar respostas, saídas ou soluções, nem mesmo ajuda ou consolo nos textos literários. Apesar disso, para mim, pessoalmente, escrever, mas sobretudo ler poemas sempre foram formas importantes de buscar compreender o mundo, os outros e a mim mesma, e muitas vezes encontrei nos textos a tradução de coisas que eu pressentia, mas não sabia formular por mim mesma.

Além disso, existe a alegria da descoberta de novos mundos, pensamentos e sentimentos, e também uma espécie de alegria da linguagem, e acho que isso já é um ganho que a experiência da literatura nos permite, ainda que uma rima não seja uma solução, para lembrar o poema do Drummond.

Dito isso, trabalhar neste livro, selecionar, revisar e organizar os poemas, sem dúvida me ajudou a atravessar a pandemia. Foi de certa forma um alívio estar às voltas com a criação num momento tão marcado pela morte e, considerando a atuação do atual governo brasileiro, pela produção deliberada da destruição e do caos.

Ana Martins Marques já ganhou o Prêmio cidade de Belo Horizonte e o Prêmio Alphonsus de Guimaraens - Divulgação - Divulgação
Ana Martins Marques já ganhou o Prêmio cidade de Belo Horizonte e o Prêmio Alphonsus de Guimaraens
Imagem: Divulgação

Por acaso o isolamento, de alguma forma, influenciou o seu processo criativo?

Não sei dizer. Por um lado, passei a trabalhar em casa e fiquei um longo período bastante isolada, e com isso acabei tendo mais tempo para trabalhar no livro.

Por outro lado, não é fácil se concentrar em qualquer projeto num período como o que atravessamos no mundo todo por causa da pandemia, mas em especial no Brasil.

O "riscar" no título do livro traz mais de um sentido. Pode explicar para a gente?

Na verdade, só me dei conta dessa duplicidade da palavra "riscar" no título a partir de um comentário da poeta Marília Garcia. A palavra aparece no livro com o sentido de fazer um traço sobre uma palavra, indicando sua supressão, e com o de riscar um fósforo, de modo que ela tem tanto o sentido de apagar quanto de acender.

Você acredita que estamos sempre nesse processo de "riscar" as coisas — seja pela eliminação ou seja pela reinvenção de algo?

Acho que sim. E, às vezes, é necessário apagar algumas coisas para que outras se acendam.

Em alguns trechos de "Risque esta palavra", o "eu lírico" narra o término de um relacionamento com uma mulher. Esses poemas foram inspirados em episódios da sua vida pessoal?

A resposta para essa pergunta é simultaneamente sim e não. Os poemas muitas vezes tomam como ponto de partida episódios da vida pessoal, mas eles são sempre apenas pontos de partida, a partir dos quais o poema vai ser trabalhado, frequentemente numa direção que pouco ou nada deixa ver daquele evento inicial que o desencadeou.

Acho que o que não nos aconteceu, ou que apenas aconteceu como hipótese, imaginação, especulação, também faz, de alguma forma, parte da nossa vida, da nossa experiência, e frequentemente é essa espécie de "acontecimento em negativo" que dá ensejo ao poema.

No decorrer da obra, o sentimento do eu lírico varia. Uma hora ele lida com as rupturas de uma maneira fria, distante; em outros momentos, de uma maneira intensa, raivosa. Essa variação foi intencional? O que ela tenta representar?

Não sei, não tinha me dado conta disso. Talvez precise reler o livro procurando prestar atenção nessa questão. Mas talvez, por outro lado, não seja necessário supor que se trata de um único e mesmo eu lírico em todos os poemas...

Uma das despedidas representadas no livro foi a sua decisão de parar de fumar. O que te motivou a largar o vício e o que, desse processo de ruptura, você não contou na obra?

O que me motivou foi possivelmente o que motiva todo mundo que um dia decide parar de fumar: medo de morrer, ou de viver uma vida ruim. Li numa matéria da revista Piauí que a poeta Wislawa Szymborska teria perguntado a um conhecido: "O senhor deixou de fumar? Ah, isso significa então que não quer morrer?".

Comecei a escrever essa série quando parei de fumar, mas depois de um tempo os poemas de certa forma se autonomizaram, incorporaram uma série de referências, imagens, citações, desdobramentos que não têm a ver propriamente com o meu processo pessoal de parar de fumar.