Mito?

Há 30 anos, Naomi Wolf virou ícone feminista com o livro 'O Mito da Beleza'. Agora, critica vacina e lockdown

Camila Brandalise De Universa, em São Paulo

1991. Aos 26 anos, a jornalista e escritora americana Naomi Wolf lança "O Mito da Beleza". O livro se torna um marco no debate sobre feminismo, mostrando como pressões estéticas atuam para controlar mulheres. A obra sustenta que quanto mais ocupadas estivermos tentando ser magras e bonitas, menos tempo e energia teremos para nos emancipar intelectual, sexual e economicamente.

2021. A discussão sobre a opressão da beleza ganha força no Brasil e coloca o "O Mito da Beleza" na lista dos livros mais vendidos do país. Ao mesmo tempo, Naomi tem sua conta suspensa no Twitter duas vezes no período de três meses, por disseminação de informações falsas sobre a pandemia — para ela, a crise sanitária seria um mecanismo de controle das empresas de tecnologia coletarem dados pessoais, inclusive por meio das vacinas. O lockdown, uma medida de regimes totalitários, e o uso de máscaras, uma afronta às liberdades individuais.

"Não sou negacionista do coronavírus, mas quanto mais entendo a ciência, vejo que há mais danos nessas políticas de isolamento do que benefícios", diz a escritora nesta entrevista a Universa, contrariando dados divulgados por organizações científicas internacionais. "Minha preocupação é que essa crise sanitária sirva de desculpa aos tiranos e às corporações de todo o mundo para nos manter isolados, restringidos da nossa liberdade para sempre."

Na conversa, Naomi também fala sobre feminismo, analisa o avanço da luta pelos direitos das mulheres no Brasil, a obsessão neurótica pela juventude e como o machismo age na esfera política.

"É ruim para as mulheres estarem isoladas em casa"

Naomi Wolf demonstra já ter se acostumado com a reação de muitos de seus leitores ao se depararem com suas recentes declarações sobre a pandemia. Quando abordada sobre o tema pela reportagem, faz um alerta: "Não sei se você quer ouvir o que tenho a dizer sobre isso."

Autora de estudos sobre democracia e ex-consultora de política no governo do democrata Bill Clinton, a americana não concorda com iniciativas de governos como o lockdown, o isolamento obrigatório para conter a disseminação do vírus.

Toda tirania quer que fiquemos sozinhos em casa, quer ter certeza de que não podemos nos reunir para protestar e nos manter sob controle

A escritora ainda afirma que a ciência comprova que o lockdown não funciona, o que não é verdade. Segundo publicações científicas consideradas referência, as taxas de transmissão caíram drasticamente em países que adotaram medidas restritivas de isolamento no período da pandemia.

Seus argumentos não terminam por aí. Naomi lança mão de ideias que vão contra protocolos de segurança e cita uma "guerra entre seres humanos e máquinas" por trás da pandemia de covid-19, o que beneficiaria as empresas de tecnologia. Em seu Twitter, também se mostra reticente à vacinação ao criticar o poderio das empresas que fabricam os imunizantes.

Conclui respondendo à pergunta sobre o impacto da pandemia na vida das mulheres. "É muito ruim para nós estarmos isoladas em casa. Precisamos uma das outras na sociedade. Acho que as mulheres precisam estar no mundo para se fortalecer."

David Levenson/Getty Images David Levenson/Getty Images

"Fui estuprada na infância. Falo disso para proteger meninas"

A escritora não se furta de dar exemplos da própria vida em suas obras, como ao relatar ter sido anoréxica na adolescência em "O Mito da Beleza". "Sou do signo de escorpião, apoio trazer os segredos à tona e contá-los como testemunha ocular. É importante, odeio o silenciamento", diz.

Também fala abertamente sobre o abuso sexual que sofreu de um professor da Universidade de Yale aos 19 anos e sobre o estupro aos sete, pelo rapaz que cuidava dela enquanto os pais estavam fora de casa.

Por muito tempo não falei sobre o abuso que sofri porque remonta a um tempo da minha vida em que era vergonhoso ter sido estuprada uma vez. Mas isso ter acontecido duas vezes era incrivelmente vergonhoso.

"Hoje acho importante contar essas histórias porque quero ser um ser humano completo e não ter uma parte importante da minha vida trancada e esquecida em um porão. Falar sobre isso protege as meninas do mesmo jeito que criticar o mito da beleza", diz. "Como mulheres, vivemos em um campo de batalha. Sobreviver a uma agressão sexual ou até mesmo a um distúrbio alimentar grave é estar na linha de frente dessa guerra."

"O Mito da Beleza" e o Brasil: ativistas de autoestima falam do impacto da obra

Divulgação

Manuela Xavier

"O mito da beleza de 1990 é o mesmo de 2021: uma atualização da perversidade do projeto político de aniquilação das mulheres pela alienação de si. Ainda hoje, a mulher pleiteia o direito à existência para além do corpo. Não somos feitas para esculpir e mutilar: somos feitas pra ser livres."

Carol Caixeta/UOL

Alexandra Gurgel

"Naomi Wolf se mostrou à frente do seu tempo ao discutir pressão estética nos anos 1990. Tenho o livro como uma bíblia, serve como base para meus conteúdos nas redes sociais. Sei o quanto a pesquisa sobre esse assunto é difícil de se fazer atualmente, imagina naquela época!"

Reprodução

Carla Lemos

"'O Mito da Beleza'" não é um livro fácil. Interrompi a leitura diversas vezes com os baques que levava. Muitas das minhas seguidoras relatam o mesmo. Foi o primeiro livro feminista que li e importante para que eu entendesse a opressão estética. Fortaleceu minha chama da rebeldia."

David Levenson/Getty Images

"Precisamos debater a obsessão pela juventude"

Naomi foi responsável por popularizar o debate sobre a opressão estética à qual as mulheres estão submetidas. No Twitter, onde ela propagou suas teorias negacionistas sobre protocolos de segurança, diversas brasileiras se manifestaram no final de fevereiro dizendo que, justamente agora, estavam lendo seu livro.

Frases de "O Mito da Beleza" têm circulado nas redes sociais no Brasil com uma capilaridade que impressiona. "É animador que um livro estrangeiro acenda a faísca para esse debate. Mas vocês devem aceitar o mérito pela própria revolução."

A próxima etapa, segundo ela, é exigir mudanças em instituições e a aplicação correta de leis que punem a violência de gênero. "Essa fase é dolorosa e vulnerável, porque as mulheres estão olhando em volta e dizendo que as coisas têm que ser diferentes."

Trinta anos depois, ela acredita que o mito segue forte, mas, hoje, observa novas roupagens. Evoluímos ao questionar o padrão da magreza — e as redes sociais têm uma parcela de mérito —, mas é preciso avançar em outras discussões, como a da obsessão pela juventude.

É um sedativo político dizer às mulheres que, conforme envelhecem, algo terrível está acontecendo, enquanto para os homens é sinônimo de mais poder, riqueza e status. As mais velhas e as mais jovens são colocadas como competidoras. É um jeito traiçoeiro de nos desunir.

Naomi Wolf

"Se tivesse escrito o livro hoje, não entrevistaria só brancas de classe média"

Ao lançar o livro em 1991, conta que foi criticada inclusive por feministas. "Diziam que eu não deveria ter escrito porque a preocupação com a beleza não é uma coisa das mulheres que estão tentando ter comida suficiente para sobreviver, e isso é verdade", diz. "Mas fiz o melhor que eu pude a partir do que eu enxergo, da minha posição."

Sua posição, de uma mulher branca de classe média americana, dá o tom da perspectiva do livro. "Tinha que reconhecer minha classe e minha identidade social para afirmar que não era um livro abrangente", diz. E faz um mea-culpa. "Se eu estivesse escrevendo hoje, poderia ter feito um trabalho melhor, entrevistar, por exemplo, mulheres mais diversas."

Para Naomi, a melhor coisa que feministas brancas devem fazer é ouvir e não querer representar nenhum grupo além do delas mesmas. "A resposta para isso não é que as mulheres brancas não falem sobre as desigualdades raciais, a resposta é que elas não universalizem suas experiências, pois são apenas uma pequena parte do que acontece. Somos 52% de todos os seres humanos no planeta, então deve haver uma diversidade de vozes e agendas."

David Levenson/Getty Images David Levenson/Getty Images

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