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"Reagi a estupro e fiquei paraplégica. Hoje ajudo pessoas com deficiência"

Ana Oliveira: "A cadeira de rodas não me impediu de realizar meus sonhos" - Wesley Sonza/Arquivo pessoal
Ana Oliveira: "A cadeira de rodas não me impediu de realizar meus sonhos" Imagem: Wesley Sonza/Arquivo pessoal

Ana Oliveira, em depoimento a Camila Brandalise

De Universa

29/06/2021 04h00

"Fiquei paraplégica em 1997, aos 17 anos, depois de reagir a uma tentativa de estupro. Estava andando em uma rua em Carapicuíba, na Grande São Paulo, com quatro primas. Passavam algumas pessoas, não era deserta. Apareceu um homem visivelmente alterado com uma arma e mandou minhas primas correrem. Ele me deu uma gravata e me mandava tirar a roupa. Tentei tomar a arma e consegui derrubar ele no chão. Quando corri, ele atirou nas minhas costas.

Em nenhum momento perdi a consciência. Hoje, aos 41 anos, ainda me lembro bem do que aconteceu. Na hora eu caí, mas não tinha muita noção do que estava acontecendo. Era tanta adrenalina que não sentia dor. Pensei que tinha quebrado a perna. Estava deitada de bruços, mas não conseguia me mexer. A polícia chegou, eu estava falando normalmente. Fui levada para um hospital e fiquei meses internada. Na época, pelas informações que me passavam, eu imaginava que estava em recuperação, que ia voltar a ser como antes.

Um dia, fui a uma consulta na AACD [Associação de Assistência à Criança Deficiente] para conseguir uma vaga para uma das terapias que eles oferecem. No corredor, conversava com um médico quando ele me disse: 'Você sabe que não vai voltar a andar, né?'. Nunca tinha tido essa informação assim, com todas as letras.

Não sei o que me passou pela cabeça na hora, mas me lembro de não ter liberdade para chorar, para me desesperar. Nas poucas vezes que isso aconteceu, as pessoas me condenavam, família, amigos. Diziam: 'Estamos fazendo o possível por vocês'. Me sentia mal e não tive um processo de luto. Só fui levando. Fui indo, e estou indo até hoje.

Claro que tudo mudou. Passei por um período de adaptação, de aprender a viver como cadeirante. Mas nunca deixei de fazer nada, de realizar algum sonho, por ser paraplégica. Se quero fazer alguma coisa, eu vou, não adianta. É da minha personalidade.

"Queria ser uma pessoa livre"

No começo, via pessoas que também tinham uma lesão medular como eu e achava elas muito tristes. Não me conformava com essa postura. Acho que devem ter ouvido muitas coisas como 'não faça isso, você não vai conseguir'. Mas eu não queria aceitar isso. Queria viver mais, viajar, sair sozinha, ser uma pessoa livre. Meus sonhos sempre foram esses. E alcancei vários.

ana oliveira minha história  - Miriã Lima/Arquivo pessoal - Miriã Lima/Arquivo pessoal
"Não quero ser vista como coitada nem guerreira. Sou uma mulher adulta vivendo minha vida"
Imagem: Miriã Lima/Arquivo pessoal

Tinha o desejo, por exemplo, de fazer intercâmbio. Passei um ano procurando um lugar que poderia me receber. Fui para Vancouver, no Canadá, aos 35 anos. Fiquei em uma casa de família. Mas foi terrível, voltei para o Brasil 11 dias depois. A mãe me tratava como criança, a casa parecia mal-assombrada. Mas me orgulho por ter feito o que queria, ter tentado.

Fiz cada coisa que nem eu acredito. Conheci um cara no bate-papo UOL, em uma época que nem existia Whatsapp, e saí de madrugada para encontrá-lo. Já fui em show de punk rock sozinha, fiz rapel. Mas acho importante dizer que eu não sou totalmente independente.

Se cair no chão, não consigo me levantar. Alguém vai ter que me ajudar. Entro no carro sozinha, mas não consigo colocar a cadeira de rodas dentro. Espero alguém passar por perto e peço ajuda para colocar para mim. Associar a pessoa com deficiência a um guerreiro, a uma pessoa consegue fazer tudo, é um erro.

"Não sou guerreira. Sou, no máximo, uma pessoa que sobreviveu"

Dizer que sou guerreira é me colocar em uma categoria fora da realidade do que é ser humano. Eu sou, no máximo, uma pessoa que sobreviveu. Como todo mundo, também acordo de manhã, escovo os dentes e saio de casa para trabalhar, porque tenho que pagar minhas contas.

Por outro lado, me incomoda também que nos vejam como incapazes. Acontece muito de ir no mercado e perguntarem: 'Você está sozinha?'. Como se eu não conseguisse fazer minhas coisas. Direto olham para mim e dizem: 'coitada'. Eu sou uma mulher adulta, tenho minha vida, me viro. Não gosto de coitadismo. Sou uma pessoa como qualquer outra.

Sou graduada em relações internacionais e pós-graduada em mídias digitais. Atualmente trabalho como agente de atendimento no Sesc Osasco [na Grande São Paulo]. Gosto dos projetos em que estou envolvida, lido diretamente com pessoas. Mas chegou uma hora que vi que não estava usando o que aprendi na minha pós-graduação para nada.

"Rede social é ferramenta para ajudar outras pessoas"

Já na época do trabalho final do curso, decidi estudar sobre ativismo de internet. Acho interessante que uma coisa tão singela como um perfil em uma rede social possa trazer questões tão importantes, discussões relacionadas a causas sociais. E pensei que também poderia fazer algo.

Em maio do ano passado, comecei a postar conteúdo para pessoas com deficiência no meu Instagram, que hoje tem quase dez mil seguidores. Também criei um canal no YouTube. Falo da minha rotina, de acessibilidade, de preconceito.

No começo, passei a receber muitas mensagens de pessoas elogiando o conteúdo. Um dos posts que mais repercutiram foi o que eu falava sobre falta de acessibilidade nas calçadas. As pessoas deixam sacos de lixo amontoados, como um cadeirante vai passar?

Faço muitas lives com profissionais da saúde tirando dúvidas sobre temas do nosso cotidiano. A maioria das vezes são ideias de seguidores. Muitas pessoas não têm acesso à informações ou não têm condição sequer de se consultar com um médico para tirar suas dúvidas. É uma ferramenta muito útil para ajudar quem precisa.