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"Após pedido de casamento nas Olimpíadas, luto por diversidade no esporte"

Izzy Cerullo, da seleção brasileira de rugby feminino, foi pedida em casamento por Marjorie Enya, em 2016 - David Rogers/Getty Images
Izzy Cerullo, da seleção brasileira de rugby feminino, foi pedida em casamento por Marjorie Enya, em 2016 Imagem: David Rogers/Getty Images

Izzy Cerullo, em depoimento a Mariana Gonzalez

De Universa

19/06/2021 04h00

"Falar sobre esse momento ainda é especial, mesmo cinco anos depois. Foi um dia muito especial, porque marcou a realização do nosso sonho olímpico [em 2016, o rugby feminino disputou uma Olimpíada pela primeira vez] e também dos nossos sonhos juntas.

Fui a última a saber o que estava acontecendo. A Marjorie [Enya, hoje esposa de Izzy] trabalhava como manager da seleção e disse que eu teria que dar uma entrevista depois da cerimônia de entrega das medalhas. Entrei com a equipe no estádio vazio, depois dos jogos, e ela estava com o microfone na mão, muito emocionada. Ali, na frente das pessoas que a gente ama, fui pedida em casamento. Ainda fico boba de lembrar.

A gente não comemora o Dia dos Namorados nem o aniversário de relacionamento. Nem tivemos um casamento muito grande, fomos só nós, minha família e a mãe dela ao cartório e depois jantar. É o nosso perfil. Por isso, nunca imaginamos que nosso pedido de casamento viraria notícia internacional. Só percebemos a repercussão nos dias seguintes, porque o telefone não parava de tocar com pedidos de entrevista.

Acho que nosso casamento foi muito comentado dentro e fora do Brasil justamente porque as pessoas ainda não encaram como natural a representação LGBTQIA+ no mundo do esporte.

Conforme o tempo foi passando, nos demos conta do privilégio que é poder fazer uma demonstração dessas dentro do rugby, sem medo de não ser aceito, de sofrer algum preconceito. A Marjorie não pediu permissão para me pedir em casamento, ela chamou nossos amigos e fez.

Essa não é uma realidade para todo mundo, dentro ou fora dos esportes. Existem países do mundo e até lugares dentro do Brasil em que não é seguro ser LGBTQIA+, mas nós conseguimos demonstrar nosso afeto sem medo, e isso é um privilégio enorme.

Vieram mensagens negativas também, claro, como 'que desnecessário' ou 'seja gay em casa', como se eu pudesse deixar de ser lésbica quando passo pela porta. Mas foi um momento importante, emblemático, porque nos lembrou que amor, respeito e diversidade fazem parte dos valores olímpicos.

Izzy Cerullo com a esposa, Marjorie Enya - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Izzy Cerullo com a esposa, Marjorie Enya
Imagem: Reprodução/Instagram
As duas se casaram em 2017, um ano depois dos Jogos  - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
As duas se casaram em 2017, um ano depois dos Jogos
Imagem: Reprodução/Instagram

"O esporte precisa se posicionar"

Ter sido pedida em casamento nas Olimpíadas virou uma chave. Eu já era muito aberta quanto à minha sexualidade, nunca escondi isso na minha vida pessoal, mas também não sentia que me cabia o papel de ativista. De tanto falar sobre representatividade, por conta da repercussão do caso, entendi a importância de levantar essa bandeira, de usar a minha plataforma como atleta para discutir a diversidade no esporte, avançar na discussão mesmo que seja só um pouquinho.

Se eu contribuir para uma pessoa repensar piadas homofóbicas, vale a pena. Acredito muito nesse trabalho de formiga. Dentro da seleção, por exemplo, ainda rolava a palavra 'viado', de forma pejorativa, e eu comecei a pegar no pé. Quando rolava, eu cortava, reclamava, até que um dia alguém perguntou por que não podia usar o termo — era o momento que eu estava esperando, porque aí pude explicar que é um xingamento homofóbico e que pessoas podem se sentir ofendidas com isso.

Claro que não é uma palavra que está 100% eliminada do vocabulário da equipe, mas aparece bem menos. Esse movimento não aconteceu em semanas, levou alguns anos, mas quando me dei conta, eu quase não escutava mais.

São muitos os fatores que fazem do esporte um ambiente mais propício à homofobia. Um deles é que a gente remete características físicas do esporte a gênero — e é importante desconstruir essa ideia. Ainda vemos força, coragem a agressividade em campo como características masculinas, e modalidades como ginástica e natação são 'femininas' porque são mais delicadas.

É comum ouvir que a mulher vai perder a feminilidade por jogar um esporte visto como masculino, como o rugby. É uma fala machista, que anda de mãos dadas com a homofobia, porque também existem comentários do tipo 'ela quer ser homem' ou 'lógico que é sapatão'.

Izzy cerullo - Julia Rodrigues/UOL - Julia Rodrigues/UOL
Izzy Cerullo: "Ainda vemos força e coragem como características masculinas. Isso precisa mudar"
Imagem: Julia Rodrigues/UOL

O esporte precisa marcar posição contra a discriminação. A Federação Internacional de Rugby, por exemplo, é signatária de um acordo contra a homofobia no esporte e tem cinco valores definidos para a modalidade, um deles é o respeito. Isso não significa que não existe homofobia no rugby, mas é mais fácil levantar uma queixa. Quando as instituições esportivas se posicionam, essa deixa de ser uma luta solitária.

Nos outros esportes, falta esse posicionamento. E esse silêncio só favorece as estruturas atuais, que de forma implícita — e às vezes explícita mesmo — dizem que o que foge da norma heterossexual não é bem-vindo, não é aceito.

Se você é uma pessoa LGBTQIA+ e a sua modalidade não afirma claramente que você será acolhido e protegido, é impossível se sentir confortável para praticar qualquer esporte.

"O Japão está resistente ao século 21"

Meu sonho é que cada vez mais atletas se sintam confortáveis sendo eles mesmos, em todos os sentidos. Se isso significa levantar a bandeira no estádio, usar um broche do arco-íris ou mencionar a namorada ou namorado em uma entrevista coletiva, tanto faz. Cada um tem um jeito de se expressar, o importante é que possam fazer isso.

Infelizmente, Tóquio não cria um ambiente favorável a isso, como o Rio de Janeiro, em 2016. O Japão não tem leis que protejam pessoas LGBTQIA+. Embora a homofobia e a transfobia ainda não fossem criminalizadas naquela época, o Brasil já reconhecia o casamento homoafetivo, por exemplo.

Quando falamos em direitos para a nossa população, o Japão parece estar muito resistente a estar no século 21. É uma hipocrisia enorme uma cidade sediar os Jogos Olímpicos e ao mesmo tempo deixar de cumprir com sua responsabilidade de proteger todos os atletas.

Nas Olimpíadas, temos algumas restrições sobre onde podemos nos expressar social ou politicamente — no pódio, por exemplo, é não pode. Mas, nas áreas em que isso for possível, quero levantar minha voz e mostrar todo meu apoio a pessoas LGBTQIA+ do Japão, mostrar que essa luta não é só deles e que há outros de nós, em outros lugares do mundo, querendo construir um mundo em que podemos viver livres e felizes."

*Izzy Cerullo, 30, é jogadora da seleção brasileira de rugby