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"Horrível ver que crianças já sabem se esconder para evitar bala perdida"

A carioca Josi Oliveira, 39,  vendedora de tapetes e estudante de gestão de RH, vive na comunidade do Jacarezinho, no Rio - Arquivo pessoal
A carioca Josi Oliveira, 39, vendedora de tapetes e estudante de gestão de RH, vive na comunidade do Jacarezinho, no Rio Imagem: Arquivo pessoal

Josi Oliveira, em depoimento a André Aram

Colaboração para Universa

14/06/2021 04h00

"Eu tenho 39 anos e sou nascida e criada na comunidade do Jacarezinho, aqui no Rio. Faz um mês daquela operação policial aqui que acabou com 28 mortos e a comunidade inteira ainda está em luto. Os moradores ainda estão digerindo o que aconteceu, as mães ainda estão abaladas, aos poucos a rotina aqui vai sendo retomada.

Naquele dia, o helicóptero começou a sobrevoar a comunidade antes das 6 da manhã. Como eles voam muito próximo das casas, as janelas e portas tremem, eu logo acordei. Quando a polícia começou a entrar nas casas e atirar, corri para o lugar mais seguro da casa, o quarto das crianças, e ficamos deitados no chão. Mas local 'mais seguro' não existe, né?

Foi difícil ver as cenas rodando na TV, no Facebook, mães chorando, gritos e pedidos de socorro. É triste ver jovens partindo dessa forma tão grotesca. Depois que ouvi relatos de pessoas que talvez não tivessem envolvimento e que foram atingidas, foi uma comoção muito grande. Nenhuma palavra descreveria melhor aquilo do que: terror.

Os moradores ainda estão digerindo o último acontecimento, as mães ainda estão abaladas, aos poucos a vida de quem mora aqui

Nós estamos sempre correndo perigo quando tem operação policial no Jacarezinho, ficamos à mercê da situação. Minha casa já foi atingida duas vezes por bala perdida. Na primeira, quebrou o vidro, e, na outra vez, amassou o alumínio da janela por onde a bala passou. Hoje há um buraco de bala na parede do quarto.

Nosso medo de morrer com uma bala perdida sempre vai existir. Acabamos de ver a morte da Kathlen Romeu, uma jovem grávida, linda, cheia de vida, que saiu de casa e tomou um tiro de bala perdida. É aterrorizante ver como algumas crianças já têm uma espécie de autoprogramação para que, no momento em que ouçam um tiro, corram para se esconder debaixo da mesa, da cama.

Sou nascida e criada no Jacarezinho, meus avós maternos vieram para o Rio ainda jovens e formaram uma família aqui, criaram cinco filhos na comunidade. Tenho dois 'filhos' que são, na verdade, meus irmãos, meu pai teve eles com uma usuária de drogas que não pôde criá-los, então eu os crio: a menina tem 13 anos e o menino, 9.

Acho que o maior medo de uma mãe é que seu filho decline daquilo que ela ensinou como base, que ele vá para as drogas ou para o tráfico, como acontece com muitos. Mas aqui o medo geral é o confronto, a bala perdida achar a sua casa, seu filho, esse é o medo de todos.

O Jacarezinho não é o local mais perigoso do Rio como dizem. A gente está no Rio então todo lugar é perigoso, mas para quem mora numa comunidade isso se intensifica 100%. Esse medo está na vida das mães quase todos os dias, não somente no momento em que há operação policial. Elas saem para trabalhar e seus filhos acabam ficando em casa. Que mãe não teria medo em deixar o seu filho numa situação de perigo? No caso de quem mora numa comunidade, isso pode acontecer a qualquer momento.

Acho que todo mundo que mora na favela já perdeu um familiar, amigo ou conhecido. A gente sai de casa e não sabe se vai voltar.

Minha infância foi aqui, onde as crianças tinham liberdade de brincar, onde a gente podia correr pelas vielas até altas horas da noite, um lugar onde os vizinhos cuidavam dos filhos dos outros, onde todos se ajudavam, essa é a lembrança que tenho. Mas quem quer morar num lugar que não tem saneamento básico direito, que não tem energia elétrica como deveria, atendimento governamental, o poder público presente como deveria?

Sem opção, a gente acaba se adaptando a isso, mas normalizar a violência é impossível.

Já houve situações em entrevistas de emprego do recrutador perguntar onde eu morava, e eu mentir algumas vezes. Mas nunca tive o desprazer de um recrutador dizer que não poderia me contratar por eu viver em área de risco, pelo contrário, as empresas onde trabalhei sempre me acolheram muito bem. Sempre tive a clareza de como me comportar no mercado de trabalho, eu pensava assim: 'Já sou negra, não tenho um padrão de beleza que a sociedade impõe, então eu preciso compensar de outra forma'.

Eu foquei na fala, nos cursos que fiz, e isso se sobressaiu muito mais do que um estigma pelo local onde moro até hoje."

* Josi Oliveira, 39 anos, é vendedora de tapetes, estudante de gestão de RH; ela mora na comunidade do Jacarezinho, no Rio, desde os dois anos de idade