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"Me chamaram até de índia fake": 1ª indígena vacinada no AM relata ataques

A técnica de enfermagem Vanda Ortega Witoto, 33, de Manaus, foi a primeira indígena a receber a vacina contra a covid-19 no Amazonas - Arthur Castro/Divulgação
A técnica de enfermagem Vanda Ortega Witoto, 33, de Manaus, foi a primeira indígena a receber a vacina contra a covid-19 no Amazonas Imagem: Arthur Castro/Divulgação

Vanda Ortega Witoto em depoimento a Carlos Madeiro

Colaboração para Universa

15/04/2021 04h00

"Eu sou técnica de enfermagem e trabalho como voluntária na comunidade onde moro, o Parque das Tribos, que é o primeiro bairro indígena de Manaus (AM). Estou me formando como pedagoga pela UEA (Universidade do Estado do Amazonas) e sou auxiliar de um professora no fortalecimento da educação estadual indígena.

Com a pandemia, como a nossa comunidade não é assistida pela Sesai (Secretaria de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde), porque estamos em território urbano, as nossas pessoas ficaram extremamente desassistidas.

Logo no início de março de 2020, iniciei um trabalho de saúde da comunidade. Quando teve o primeiro decreto para fechamento do comércio, a nossa comunidade foi afetada pela necessidade alimentar. Iniciei ali uma campanha nas redes sociais. Ao mesmo tempo, no grupo de Whatsapp de moradores, comecei a fazer pequenos vídeos orientando sobre a questão do isolamento, o uso de máscara. A gente é um povo que gosta de estar sempre muito junto, e naquele momento precisava ficar um pouco afastado.

À medida que o coronavírus foi avançando, a nossa comunidade passou a ser afetada pela covid-19. Coloquei-me à disposição, passei a ir à casa das pessoas com sintomas. Mas a gente não tinha equipamento e comecei a pedir ajuda para poder ter um termômetro, um oxímetro, um avental. Começamos, então, a receber esses equipamentos e também alimentos e tecido para produzir máscaras.

Aí comecei a aparecer na mídia mostrando a realidade: que as populações indígenas estavam totalmente desassistidas. Mesmo assim, nenhum poder público veio até aqui. Nossas doações foram acontecendo a partir da sociedade.

Agora, no início de 2021, com a segunda onda da covid-19, a gente conseguiu trazer vários profissionais indígenas daqui e de outros locais, que formam hoje uma grande equipe. Construímos um centro de apoio a pacientes com covid na nossa comunidade, com apoio das lideranças indígenas e da sociedade. Hoje, é ele que garante atendimento a todos aqui. Coordeno esse centro e temos equipe com enfermeiro e técnico, que estão se voluntariando em turnos para dar esse suporte.

Como a nossa luta ganhou uma repercussão, recebi convite para ser a primeira vacinada no Amazonas. Primeiro pensei em negar, mas depois refleti: poderia ser uma oportunidade para falar e pedir que o estado olhasse para esses povos indígenas da cidade também. Historicamente, o discurso do poder público sempre é nos negando ser indígenas.

Quando aceitei o convite e fui no dia 18 de janeiro, sabia também das notícias falsas que tinham chegado aos nossos territórios. As nossas comunidades tinham pessoas que não queriam se vacinar por medo. E eu virei um símbolo para eles. Eles olham e vêem que estou bem, então tomam a vacina.

Mas nem tudo foi fácil. Dois dias depois de tomar a vacina e daquela repercussão muito positiva, um dono de canais de TV daqui pegou várias imagens minhas de redes sociais, onde estou sem minhas roupas tradicionais de indígena, fez uma montagem e compartilhou dizendo que eu era uma 'índia fake', que não era para ser vacinada, que deveriam vacinar 'índios de verdade' e não 'picaretas' como eu. Ele colocou minha identidade em xeque, negou minha luta. E essa imagem viralizou, muitas pessoas foram ao post com palavras de preconceito, de ódio. Foram ataques de vários locais do país.

A verdade é que a sociedade ainda não quer ver uma indígena em um lugar de destaque, de conquista. Isso ocorre também com os negros. Esse ataque não foi contra a Vanda, foi contra os povos indígenas. Se fosse qualquer outra imagem similar — como ocorreu com várias outras mulheres indígenas vacinadas —, teria ataque também.

A gente fez um boletim de ocorrência, tentamos mapear as mensagens de ódio e violência histórica. Várias instituições compartilharam mensagens de apoio.

Não quero que isso fique impune, mas a punição maior é desconstruir, mostrar nossas lutas, nossa realidade. As nossas lutas são muito árduas. Não rebato com discursos ódio, tenho acolhido muitas pessoas que desconhecem nossa história para explicar quem somos.

Acho que, ao longo do tempo, me fortaleci muito. Carrego uma força ancestral que vem do nosso povo. Nós já fomos muito silenciados e hoje a gente tem conquistado espaço para falar; e nossas vozes estão incomodando muita gente que não reconhece nossa história.

São mais de 520 anos que somos silenciados, que é negada a nossa história, a nossa identidade. Agora é hora de falar, contar a história não pela ótica do colonizador, mas pela nossa voz."

*Vanda Ortega Witoto, 33, técnica de enfermagem e primeira vacinada contra covid-19 no Amazonas