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Sofri erro em hospital, quase morri ao fazer tomografia e vou mudar de vida

Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Mariana Costa

Colaboração para Universa

01/09/2020 04h00Atualizada em 02/09/2020 10h31

Uma experiência inesperada e assustadora deu um novo significado à vida da escritora e roteirista Roberta Simoni, 36. Vítima de um erro durante o atendimento hospitalar, ela sofreu uma intoxicação após um enfermeiro confundir a medicação: em vez do medicamento prescrito para aliviar a dor, ela recebeu na veia uma dose de dexmedetomidina, um sedativo forte usado em pacientes que estão em coma. O que era para ser uma simples tomografia tornou-se uma internação de três dias, dois deles no CTI.

O caso aconteceu no dia 10 de julho, no meio da pandemia, em um hospital particular em Copacabana, na zona Sul do Rio. Roberta vinha sentindo dores de cabeça e estava sob forte estresse: havia sido demitida do trabalho e quase perdeu sua cachorra Wilma após uma parada respiratória repentina. As dores de cabeça pioraram e causaram um transtorno isquêmico transitório, um problema neurológico que interrompe o fluxo de sangue no cérebro durante alguns minutos ou horas. Ela aguardava para fazer uma tomografia quando foi intoxicada.

Enquanto os médicos corriam contra o tempo para eliminar a substância do seu organismo, ela vivia a sensação de desprender-se do próprio corpo. E de se despedir da vida. Segundo a Sociedade Brasileira de Anestesiologia, a dexmedetomidina é um fármaco que causa, entre outras coisas, redução da pressão arterial e da frequência cardíaca. É utilizado nos casos em que o paciente não pode perder totalmente a consciência, o que fez com ela que tivesse flashes de memória. "Me senti numa daquelas séries de hospital, muita gente à minha volta. Senti que minha vida estava por um fio, um fio muito sensível", lembra.

Roberta sofre de depressão, mas faz questão de destacar que sempre teve muito gosto pela vida, contrariando um dos vários mitos que cercam a doença. A experiência trouxe novos significados para coisas cotidianas como um mergulho no mar, a companhia da família, estar com os amigos. Roberta, agora, quer realizar todos os sonhos adiados e o primeiro deles será uma mudança radical: em dezembro, vai para Londres, onde pretende morar. Na bagagem, coragem, gratidão e uma intensa vontade de viver.

***

"Eu vinha tendo muitas dores de cabeça. Fiz uma live para falar de literatura, minha mãe assistiu e percebeu que minha boca estava meio torta. Não achei nada demais, minha boca é meio torta mesmo. Até que minha amiga e sócia também alertou, havia algo de estranho comigo. Fui ver o vídeo e, de fato, minha boca estava bem torta! No dia seguinte, estava ainda com muita dor de cabeça, cheguei a vomitar. Elas me aconselharam a ir ao hospital, mas eu não queria, ainda mais em meio à pandemia. Já tinha ido parar na emergência um mês antes por conta dessas dores de cabeça.

Fui a contragosto e não falei nada para ninguém. Não queria incomodar meus amigos. Minha mãe estava em Cabo Frio (RJ) e minha sócia, em Curitiba. Ir para o hospital sozinha foi uma péssima decisão. Ao preencher o formulário, pediram o telefone de alguém próximo e dei o telefone de uma amiga que mora no Rio.

Os médicos que me atenderam viram que, de fato, minha boca ainda estava meio torta. Levei uma tomografia que tinha feito na crise anterior, mas acharam melhor fazer uma nova. Me perguntaram se eu queria tomar um remédio para dor e eu falei que sim. A médica prescreveu a medicação e um enfermeiro veio aplicar.

Nunca tive essa maldade de prestar atenção se era mesmo o remédio certo. Comecei a me sentir muito sonolenta, foi a primeira sensação. Depois entrei em uma espécie de viagem psicodélica. Na hora, pensei: deve ser assim que as pessoas se sentem quando tomam ácido, LSD. Quando a médica se aproximou, eu já estava meio que apagando.

Perguntei se era normal ficar meio doidona, a última coisa que lembro ter dito. Depois, desmaiei. Lembro da movimentação dos médicos e enfermeiros, alguém me pegando no colo e colocando na maca. Já não estava 100% consciente, eram flashes. Lembro de ligarem vários aparelhos e fios em mim. Queria falar e me mover, mas não conseguia.

Os médicos discutiam e falavam que havia algo errado comigo. Senti como se tudo tivesse acabado ali. Morrer é isso, então? Me veio uma sensação de resignação. Tive um desapego muito grande do meu corpo e pensar nisso hoje me assusta. Ouvia as pessoas me chamando, gritando meu nome e tentando me animar. Estavam injetando muito soro para o efeito do remédio passar. Meu coração batia muito lento.

Não sei se cheguei a ter uma parada cardíaca ou se meus batimentos apenas ficaram muito fracos. Tinha alguns flashes e percebia a tensão ao meu redor, me senti em uma daquelas séries de hospital, com muita gente à minha volta.

Tive a consciência de que estava morrendo, sentia que minha vida estava ligada por um fio muito sensível. Ao mesmo tempo que vinha uma sensação de paz, uma parte de mim queria muito viver e reagiu. Sabe aquele sentimento de 'deixa eu ficar mais um pouquinho'? Não deixei nem meu quarto arrumado! Será que o vibrador ficou sobre a pia? Não foi algo desesperador, foi até engraçado.

Acordei com a boca muito seca e a dor de cabeça tinha piorado. Havia fios pelo meu corpo todo, até nos pés. Perguntava o que estava acontecendo, os enfermeiros não falavam. Ninguém dizia nada! Até que um médico fechou a cortina e disse: você tomou o medicamento errado. Em vez de tomar remédio para dor, você tomou um sedativo forte.

Tomei dexmedetomidina direto na veia. Depois, conversei com uma amiga que é médica anestesista e ela disse que é um sedativo potente, aplicado em pacientes que estão em coma induzido. Faz o coração diminuir os batimentos e precisa ser bem diluído em soro. Jamais poderia ser aplicado direto na veia.

Me perguntaram se tinha alguém que eles pudessem avisar. Eu achava que ia voltar para casa, que seriam apenas mais algumas horas ali, mas não. Me disseram que era melhor estar acompanhada. Ligaram para minha amiga e disseram que eu tinha sofrido uma reação alérgica. Os médicos tentavam amenizar, até que uma enfermeira falou que o que aconteceu comigo era muito sério.

Resolveram me deixar em observação no CTI, por precaução. Ligaram novamente para minha amiga dizendo para não ir, que no CTI não podia ter acompanhante. Ela estranhou e foi mesmo assim. Quando chegou, me encontrou naquele estado: cheia de fios e sem entender nada. Estavam tão preocupados em me salvar da intoxicação causada por eles que não se preocuparam com o que me levou ao hospital.

Ela foi minha testemunha e viu que a situação estava um pouco fora de controle. Minha língua enrolava, eu mal conseguia falar. Vim ao hospital por conta uma dor de cabeça forte e minha boca torta, e acabei ligada a um monte de fios sem poder nem levantar para ir ao banheiro!

Ainda teve uma situação engraçada. Não podia levar minha bolsa, apenas o celular. Lembrei que tinha um rivotril comigo e o escondi dentro da calcinha. O aparelho ligado no meu coração ficava o tempo todo fazendo um barulho que não me deixava dormir. O médico me perguntou se eu tomava algo para dormir eu respondi que tomava rivotril de vez em quando. Ele mesmo me receitou, pensei 'ufa'. Uma enfermeira, muito simpática por sinal, me avisou que estavam com dificuldade de conseguir o rivotril e eu resolvi contar que tinha um escondido comigo. Ela arregalou os olhos e disse 'vou fazer o que, né?'.

No dia seguinte, só queria ir embora. Com a troca dos plantões, a cada novo médico eu precisava lembrar que 'não era nem para eu estar aqui'. A versão oficial deles era de que tive uma reação alérgica. Fiquei dois dias no CTI e mais um no quarto. Fui muito educada com todo mundo, afinal as pessoas que me atenderam depois não tinham nada a ver com o que aconteceu.

Por um momento achei que tinha ficado louca, que ninguém acreditaria mais em mim. Estava estressada e nervosa, queriam ainda me deixar mais um dia no hospital. Disse que, se não me dessem alta, sairia de qualquer jeito. Fizeram nova tomografia e ressonância. A dor de cabeça diminuiu. Tive alta!

Era o universo dizendo que tinha outros planos

roberta no hospital - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Roberta Simoni ao deixar o hospital
Imagem: Arquivo Pessoal

Vinha sentindo dores todos os dias durante dois meses. Pouco tempo antes disso, minha cachorra teve uma parada respiratória, quase morreu. Sou apaixonada por ela, gastei uma fortuna para salvá-la e fiquei desempregada logo depois. Já tenho depressão, então tudo piorou. Resolvi voltar a dar aula, a princípio, para repor o dinheiro que gastei pra salvar minha cachorra. Bem no dia da divulgação do meu curso, recebi a ligação do trabalho para falar da minha demissão. Parecia o universo dizendo: calma, tem outro plano para você.

Fiz 36 anos dias depois dessa experiência. Foi muito emocionante. Acho lindo quem fica feliz, mas eu sinto um misto de emoções. Estava sob os cuidados da minha família em Cabo Frio. Para não passar em branco, meu melhor amigo passou em casa e saímos de máscara, compramos vinho e fomos para beira da lagoa. Chegou outro amigo e ficamos vendo o pôr do sol. Contei o que havia acontecido, chorei, me emocionei.

Senti muita gratidão por estar viva, uma urgência de viver. Passar por isso foi algo como um 'acorda, menina!'. Quando se vê a morte de perto, a gente entende que a vida é muito breve e pode acabar a qualquer momento, só não sabemos quando.

Normalmente falo muito sobre o que sinto e penso, e isso tornou-se ainda mais latente depois dessa experiência. Dou muito mais valor ao tempo que fiquei com minha família e amigos. No primeiro mergulho no mar, chorava de emoção. Uma gratidão enorme por estar viva. Embora tenha depressão, sempre tive muito gosto por viver. Sabe aquela coisa de que eu era feliz e não sabia? Eu era feliz e sabia! Agora, mais ainda.

Tinha planos de sair do país, um sonho. Resolvi não esperar mais e estou indo morar na Inglaterra em dezembro. Vou para não voltar, vou na cara e na coragem, nem inglês falo. É uma mudança muito grande, mas a vida passa rápido. E quero realizar todos os meus sonhos. Tenho muitos. E, enquanto estiver aqui, quero realizar todos eles."

Errata: este conteúdo foi atualizado
Na chamada da home-page e na versão inicial deste texto, a reportagem usa o termo "erro médico" para se referir ao erro do qual Roberta descreve ter sido vítima. Após comunicados de erro, a reportagem buscou fontes, se deparou com pontos de vista distintos, e decidiu adotar a recomendação de Renato Battaglia, presidente da Comissão de Direito Médico da OAB-RJ e IAB. "O uso desse termo vem sendo muito discutido ultimamente, é uma discussão que vem aumentando muito. A maneira mais moderna de descrever uma situação desse tipo é erro de um sistema --erros que quase sempre estouram na mão do médico e do enfermeiro."