Topo

"Como contei para os meus pais que fui abusada por um vizinho na infância"

Laura foi vítima do mesmo agressor aos 6 e aos 15 anos - Arquivo pessoal
Laura foi vítima do mesmo agressor aos 6 e aos 15 anos Imagem: Arquivo pessoal

Camila Brandalise

De Universa

03/08/2020 04h00

A carioca Laura Maria Castilho de Souza, 20, foi vítima de estupros praticados por um vizinho quando tinha seis anos, no Rio de Janeiro, e depois, novamente aos 15. "Foram várias vezes nesses dois momentos. O abusador era amigo da minha família. Na infância, eram na casa dele. Na adolescência, foi dentro da minha própria casa", diz Laura.

"Ao todo, foram 14 anos de silêncio sobre o que aconteceu. Tinha medo de eles não acreditarem em mim ou me questionarem de uma forma que me culpasse. Tinha medo até de acreditarem em mim e me obrigarem a ter uma reconciliação pacífica, pedir que eu perdoasse o abusador", diz.

Perto de fazer 20 anos, em março deste ano, decidiu revelar, em um jantar com a família, o que tinha acontecido. Hoje, conta sua história para amigos e nas redes sociais para que outras mulheres tenham coragem de revelar as violências que sofreram ou que estejam sofrendo. "Sinto que falharam comigo nesse aspecto. Se na época tivessem falado sobre abusos na escola, explicado o que era, dito que ninguém podia me tocar dessa ou daquela forma, poderia ter acabado muito antes."


Leia o relato dela.


"Fui abusada por um vizinho dos seis aos sete anos e, depois, dos 15 aos 16. Na infância, eram na casa dele, na adolescência, foi dentro da minha própria casa. Fui falar disso somente aos 18, quando expus o que aconteceu a uma psicóloga. Na época, ela perguntou se eu queria contar aos meus pais. Eu queria, mas tinha medo de várias coisas.

O abusador era amigo da minha família. Eu tinha medo de eles não acreditarem em mim ou me questionarem de uma forma que me culpassem, perguntassem por que não reagi, por que não fiz nada na hora. Tinha medo até de acreditarem em mim e me obrigarem a ter uma reconciliação pacífica, pedir que eu perdoasse. Medo de me acharem louca, de acharem que eu estava mentindo. De me julgarem como errada.

Quando contei, minha mãe até me questionou por que ter esses medos todos, disse que sempre acreditaria em mim. Nem sei por que eu pensava assim.

Foi uma construção até eu chegar o momento de eu falar. E a iniciativa dos meus pais foi importante nisso. Tinha medo também de contar e decepcioná-los de alguma maneira. Eu sempre falava muito sobre o tema dos abusos sexuais contra crianças. Minha mãe me perguntava se eu já tinha passado por aquilo, e eu sempre negava.

Até que um dia sentamos para jantar, começamos a conversar, minha mãe tocou nesse assunto de novo. E ela chegou a falar o nome do abusador. Disse que sempre teve cuidado comigo e que, um dia, quando achou que esse fulano de tal estava com um comportamento estranho, ela se afastou dele, impediu que ele voltasse a frequentar nossa casa.

Aí eu disse: 'Eu quero dizer que eu já passei, sim, por isso'. Como ela já tinha dito o nome, senti como uma abertura para falar. Se ela não tivesse tido a iniciativa, talvez eu não conseguisse contar. Acho que os pais têm um papel muito relevante quando se trata desse assunto, quanto a falar. Por muitas vezes a pessoa não consegue tomar a iniciativa de falar disso sozinha. Então, minha mãe dar abertura ao assunto foi mesmo essencial para mim.

Quando fui contar, coloquei algumas regras para que meus pais seguissem. Não queria que olhassem para mim enquanto eu contava, porque estava com muita vergonha. Pedi para não ser interrompida, para não fazerem perguntas e, depois, que não trouxessem o assunto à tona quando bem entendessem, que perguntassem antes se eu gostaria de falar daquilo ou não. Lembro que eu estava tão envergonhada que, se meu pai olhasse para mim, eu gritava: 'Não olha para mim'.

14 anos de silêncio

Ao todo, foram 14 anos de silêncio. Nesse tempo, eu tinha o pensamento de que não podia contar aos meus pais. E aí comecei a questionar meu pensamento: 'Por que eu não posso? Eu posso, sim'. Eu posso contar o que sofri. Não preciso mais ter medo de o abusador fazer algo comigo, nem tem como, porque agora vivemos em Portugal. Eu posso contar, sim. Não estou errada, nada do que aconteceu era culpa minha.

Meus pais ficaram bem chocados, se sentiram culpados, achando que não cuidaram direito de mim. Eu disse que não era culpa deles. Tinha uma pessoa responsável por cuidar de mim na época, ela que não cuidou, e eu acabei sendo vítima desse vizinho.

Falar sobre o abuso para os meus pais me ajudou muito. Primeiramente, na minha relação com eles. Depois que consegui contar, a gente, enquanto família, parece que criou um vínculo maior de confiança. Minha mãe me perguntou se eu queria denunciar, e eu disse que sim. Eles me apoiaram muito em todo o processo. Fizemos a denúncia pela internet e estamos aguardando o andamento. Quando fiz a denúncia fiquei muito ansiosa. Eu estava eufórica, mas não de alegria, não era uma euforia boa. Estava eufórica por ter denunciado, finalmente, e ansiosa, porque queria que as coisas andassem rápido. Entrava para ver em que pé estava a denúncia todo dia. Tive crises de ansiedade por ter que voltar a lidar com aquelas memórias.

"Poderia ter acabado antes"

Sinto uma frustração com o mundo por isso [abusos sexuais] acontecer tanto. Quando a gente fala de pedofilia, todo mundo se mete para dizer o que é, mas não ouvem as vítimas.

Me incomoda muito ver a responsabilização das mulheres. Ouvir as pessoas dizerem: 'Ah, também, olha a roupa que ela estava usando', ou 'olha a hora que estava na rua', tentando justificar uma violência contra elas.

Minha sensação é a de que falharam comigo, socialmente, nesse aspecto. Eu não era capaz de identificar o que estava acontecendo. Se na época tivessem falado sobre abusos na escola, explicado o que era, dito que ninguém podia me tocar dessa ou daquela forma, poderia ter acabado muito antes."