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Faxina todo dia, dedos feridos: como mulheres com TOC enfrentam a pandemia?

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Bárbara Therrie

Colaboração para Universa

01/06/2020 04h00

Lavar bem as mãos com água e sabão, trocar a máscara de proteção a cada duas horas, botar as roupas para lavar assim que chegamos em casa. Em maior ou menor grau, grande parte das pessoas desenvolveu esses hábitos por medo de ser contaminada com o novo coronavírus. Mas e quem sofre de Transtorno Obsessivo-Compulsivo?

Em conversa com Universa, duas mulheres com TOC de limpeza contam como têm lidado com a pandemia. Cristina* toma banho com sabão em vez de sabonete, faz faxina diariamente e está com os dedos das mãos doloridos e desbotados de usar um litro de água sanitária por dia. Já Vanessa* lava as sacolas e embalagens de tudo que compra no mercado, num processo que leva uma tarde inteira, e desenvolveu uma alergia que deixou o corpo dela todo empipocado e ferido de usar tanto álcool em gel.

Ambas têm muito medo de contrair o vírus e morrer. Conheça abaixo a história delas:

"Tomo seis banhos por dia e me esfrego a ponto de machucar"

"Há dez anos, eu tenho três tipos de TOC: religioso, de organização e limpeza/contaminação. Com essa pandemia, tenho sofrido muito com o TOC de limpeza, tem sido um inferno. Estou fazendo home office, tenho horário fixo das 8h às 14h30, mas não consigo focar integralmente no trabalho porque fico parando para organizar as coisas e fazer faxina.

Acho que o coronavírus pode estar em qualquer objeto que esteja perto de mim: na cadeira, no notebook, no ventilador, no copo. Por isso limpo a casa sem parar. Se eu limpo qualquer superfície, a mesa da cozinha, por exemplo, e sem querer eu encosto nela, os pensamentos de contaminação ficam ruminando na minha mente. Eu preciso limpar tudo de novo, não adianta higienizar só a região que eu toquei.

Me sinto exausta, meu corpo dói. Às vezes sento e choro, penso que estou ficando louca.

Antes da pandemia, eu fazia duas faxinas por semana, uma pesada na quinta, e outra mais leve no domingo. Mas agora é diariamente, incluindo lavar banheiro, paredes e azulejos. Ouvi no noticiário que água sanitária, sabão e álcool em gel têm o poder de matar o coronavírus, por isso eu uso sem dó. Utilizo um litro de água sanitária por dia. Estou com dedos das mãos doloridos, desbotados, irritados e feridos de usar tanta água sanitária para limpar a casa e não correr o risco de ser contaminada.

Costumava tomar dois banhos por dia, mas hoje chego a tomar seis. Usava sabonete comum, mas agora tomo banho com sabão neutro. Esfrego meu corpo com bastante força a ponto de machucar. Algumas partes das minhas coxas estão manchadas e ressecadas.

Depois do banho, em vez de passar o hidratante, encho a mão de álcool líquido e passo no corpo.

Meu organismo reagiu a esses produtos, tive ardência, muita coceira e desenvolvi uma micose. Fui na dermatologista e ela me deu uma bronca, disse que eu não posso passar essas coisas no corpo, só nas mãos. Explicou que isso pode gerar lesões e até outras doenças. Ela me receitou um antibiótico e um creme. Eu estou seguindo o tratamento, mas continuo tomando banho desse jeito.

O coronavírus virou minha maior obsessão: durmo e acordo pensando que vou morrer contaminada com esse vírus.

Cada vez que vejo o número de mortos crescendo, fico mais apavorada. Além do TOC, tenho síndrome do pânico, e quando vejo informações sobre os óbitos tenho crises: o coração fica acelerado e me dá falta de ar. Preciso tomar um ansiolítico por dia, mas chego a tomar três para me acalmar.

Sinto que eu tenho piorado horrores, não quero tocar em ninguém, não quero que ninguém me toque ou fale perto de mim. Todos os dias falo para o meu marido não encostar em mim e não me tocar antes de ele tomar banho, passar álcool em gel e álcool líquido quando ele chega do trabalho ou do mercado. Além de lavar as roupas dele, higienizo tudo que ele usa, não confio que ele mesmo limpe.

Ele fala que estou exagerando, que tenho que parar com isso e me controlar mais. Meu relacionamento com ele tem sido bastante afetado. Ele não entende o meu problema, então o TOC é uma luta diária que tenho que passar sozinha. Apesar disso, tenho consciência de que os meus comportamentos têm sido desgastantes para ele.

Eu sinto tanta angústia e desespero de eu ou meus familiares sermos contaminados que quero controlar as pessoas.

Falo para elas não saírem de casa, não receberem visitas. Ligo para a minha mãe chorando falando que ela, minha irmã e eu vamos morrer por causa do corona. Eu entendo que é um excesso da minha parte, mas não consigo me controlar e acabo gerando vários atritos.

À noite meu corpo somatiza todas as minhas ações e eu começo a sentir alguns dos sintomas da Covid-19: cansaço, falta de ar, pressão no peito. Mas sei que tudo isso é pela ansiedade que esse momento está me causando. E assim tem sido minha rotina: vejo uma notícia, fico ansiosa, vêm os pensamentos obsessivos, depois os rituais e o ciclo se repete. É perturbador."

Cristina* (o nome é fictício a pedido da entrevistada), 26 anos

"Passo o dia todo pensando que estou com o vírus e fazendo limpeza"

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"Eu tenho TOC de limpeza e de contagem desde os 10 anos de idade. Faço tratamento com psicólogo e psiquiatra desde então. Meu quadro estava estável até surgirem as primeiras informações do novo coronavírus. De cara, já senti muito medo de ser contaminada e morrer, de não conseguir atendimento em um hospital, de não estar limpa o suficiente. Minha primeira ação foi comprar mais sabonetes antissépticos e produtos de limpeza, inclusive de limpeza hospitalar.

Quando começou essa epidemia, virei a louca do álcool em gel. Passei tantos e de tantas marcas diferentes que desenvolvi uma reação alérgica e fiquei com a pele toda empipocada e com feridas. Quando eu assistia a alguma matéria sobre o coronavírus ou tinha picos de achar que eu estava com o vírus, passava uma quantidade excessiva no corpo, até atrás da orelha. Chegava a gastar um pote médio em três dias. Fiz uma consulta virtual com a dermatologista que me indicou um tratamento.

Estou tomando medicações via oral para controlar o estrago que fiz na minha pele.

Fui demitida do emprego devido aos efeitos da crise causados pela pandemia. Com esse tempo livre, os sintomas do TOC ficaram ainda mais potencializados. Passo a maior parte do dia tendo pensamentos de que posso ter contraído o vírus e fazendo limpeza.

Moro com meus pais. Como eles são idosos, fumantes e estão no grupo de risco, eu que vou ao mercado e à farmácia. A sensação de ter que sair é angustiante e aflitiva. Tenho que rezar dez vezes, fazer o sinal da cruz dez vezes, encostar na imagem de algum santo para ter alguma proteção.

Se eu não fizer isso, sinto que alguma coisa de ruim vai acontecer comigo.

Sempre saio com tudo esquematizado, de cabelo preso, máscara e luva. Saio bem cedo ou à noite, geralmente nos horários com um fluxo menor de pessoas. Me mantenho afastada o máximo possível e não converso com ninguém. Quando vou ao mercado, levo minha sacola ecológica ou meu carrinho de feira. Se tem algum corredor com muita gente, por exemplo, vou para outro mais vazio e volto só depois.

Quando chego no meu apartamento, faço todo um ritual de limpeza. Tiro meu tênis e deixo sob um pano com cândida no hall. Depois coloco de molho e lavo. Coloco as roupas para lavar na máquina com sabão em pó, lisoform e desinfetante. Lavo as mãos até o antebraço, entre os dedos e as unhas por 20 segundos. Seco e passo álcool em gel.

Em média, lavo as mãos umas 30 vezes por dia.

Deixo as compras no corredor e vou tomar um banho que geralmente demora 40 minutos. Passo o sabonete no corpo de quatro a seis vezes, sempre em número pares. Me troco, pego as compras e levo tudo para a cozinha.

Lavo todas as embalagens com água e sabão, depois passo álcool 70% e mais os produtos de limpeza hospitalar. Higienizo todos os produtos, um por um: todas as caixas de leite, de suco e por aí vai. O problema é que às vezes eu acho que não limpei o suficiente, aí repito todo o processo e lavo tudo de novo. Se eu não faço, isso me perturba, me dá uma sensação de desespero, de agonia. Depois que faço sinto um alívio.

Além disso, lavo, esfrego e deixo secar todas as sacolas, tanto as ecológicas quanto aquelas de plástico do mercado. É um processo supercansativo e demorado, que leva uma tarde toda. Após terminar a higienização, limpo a casa, tiro o pó, passo pano e tomo outro banho porque me sinto suja e também para descartar todas as possibilidades ter ficado com algum resquício do vírus.

Eu não fazia nada disso antes da pandemia, mas passei a fazer para diminuir os riscos.

Mesmo com um dia exaustivo como esse, em que meu corpo e mente estão superfatigados, eu não consigo desacelerar à noite e sofro com insônia causada por uma ansiedade muito grande. É horrível, fico pensando na falta de leitos no hospital, com medo desse vírus atingir alguém da minha família, de alguém estar infectado no prédio onde eu moro e não querer contar.

Já perdi as contas de quantas vezes achei que estivesse contaminada. Tenho rinite, é comum eu ter sintomas gripais, como espirro e nariz escorrendo. Isso já é o suficiente para criar na minha cabeça a ilusão de que estou com coronavírus. Tenho que me policiar para voltar à realidade e dizer para mim mesma que é só uma crise de rinite e que eu trato isso há anos.

Além do cuidado dentro de casa, eu e alguns vizinhos produzimos um documento no condomínio pedindo para que, além da limpeza feita pelos funcionários, cada família se responsabilizasse pela higienização dos halls e do elevador. Cada morador tem que passar pano com lisoform e desinfetante no chão dos corredores de cada andar. O elevador é uma grande fonte de contaminação, por isso, eu aperto o botão com o cotovelo, e passo um lenço umedecido de álcool 70% em tudo o que toco.

Racionalmente pensando e conversando com a minha terapeuta, sei que é preciso ter cuidado, mas que não é necessário fazer tudo isso. Todo esse excesso tem me causado muito sofrimento, mas é algo que não consigo controlar. Quando vou ver já estou fazendo."

Vanessa* (o nome é fictício a pedido da entrevistada), 32 anos