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O que ficar nu em público pode te ensinar sobre o seu corpo

A cultura do corpo livre pode mudar não só sua visão de si mesma - Getty Images
A cultura do corpo livre pode mudar não só sua visão de si mesma Imagem: Getty Images

Nina Lemos

Colaboração para Universa

14/08/2018 04h00

Há alguns anos, uma foto da chanceler Angela Merkel, a mulher mais poderosa do mundo, jovem, andando nua pela praia com as amigas, vazou e causou escândalo. Como assim, Angela era uma hippie alternativa? Longe disso.

Merkel era uma estudante de química que cresceu na Alemanha do leste (a antiga Alemanha comunista) e ali, ir para a praia pelado era regra. Apesar da veracidade da foto nunca ter sido confirmada, tudo faz crer que era, sim, a chanceler. Por que não seria?

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Ficar nua em sauna, paques, lagos e praias faz parte do FKK (Freikörperkultur, ou Cultura do Corpo Livre), um movimento criado no século 19 por intelectuais e artistas na Alemanha.

O movimento (que se popularizou na Alemanha comunista) ainda é praticado em todo o país e em países escandinavos. Hoje, é apoiado por 76% dos alemães e é visto como uma tradição nacional.

Na maioria das praias da Alemanha, o normal é tomar banho nu. A prática é adotada por pessoas de todas as idades, mas é ainda mais popular entre pessoas com mais de 50 anos, de ambos os sexos. Avós e avôs ficam pelados na praia com os netos normalmente.

Angela Merkel também é adepta das "nudes" - Reprodução - Reprodução
Angela Merkel também é adepta das "nudes"
Imagem: Reprodução

Em quatro anos vivendo na Alemanha, passei a achar que as pessoas aqui eram menos encanadas com o corpo (elas, por exemplo, fazem menos procedimentos estéticos). E que, de alguma maneira, quem convive com essa cultura, acaba sendo um pouco contaminado “no bom sentido.”

“Claro que você ver pessoas que têm uma relação tranquila com o corpo te faz ver o seu de outro jeito”, diz a antropóloga Mirian Goldenberg. autora de livros como "Toda mulher é meio Leila Diniz" e  “Coroas: corpo, sexualidade e envelhecimento na cultura brasileira”.

Há cerca de dez anos, depois de uma temporada na Alemanha, Mirian estuda a diferença entre as duas culturas (principalmente no que diz respeito à relação das mulheres com o corpo e com a imagem).

“A principal diferença entre essas duas culturas é que o corpo nu não é visto como algo sexual, mas como um corpo que pode sentir prazer com o simples ato de se banhar ao mar. Você não tem o olhar da vergonha nem do julgamento”, diz. Segundo ela, experimentar isso “pode mudar totalmente a relação que se tem com o corpo.”

Verão em Copacabana

Não é preciso ir para a Alemanha para experimentar tal liberdade, lembra a antropóloga. Para ela, isso é presente, com suas diferenças, em alguns lugares do Brasil como a praia de Copacabana, no Rio de Janeiro.

“Se você for a Copacabana em um fim de semana de sol, vai ver mulheres de todas as idades e corpos de biquíni. São pessoas que não estão preocupadas em “como vão aparecer”, no que vão pensar. Elas só querem mesmo aproveitar o sol, comer churrasco com os amigos”, diz.

Esses exemplos (que podem estar em Copacabana ou na Alemanha), segundo ela, podem, sim, ajudar a mudar nossas relações com os corpos. “Vendo pessoas que são livres, pensamos 'por que eu não posso?'”. E cita a si mesma como exemplo.

“Passei um tempo pensando, por exemplo, que estava velha, não tinha mais idade para usar um shortinho. Vendo que outras mulheres têm um relação de liberdade com isso, passei a pensar: 'por que não posso usar um shortinho com a minha idade, com celulite?' Claro que posso. E uso”, diz a antropóloga.

Corpos diversos

A transição entre ser “tímida” com o corpo e “totalmente solta” nem sempre é tão fácil. “Moro na Alemanha há 5 anos e acho que a minha relação com corpo mudou completamente. Encaro a nudez hoje com total normalidade. A primeira vez que fui a uma sauna aqui foi um choque (na saunas mistas todos ficam pelados), demorei para me sentir bem.

Hoje, procuro justamente lagos, praias e piscinas onde sei que posso ficar nua e que as pessoas estarão soltas também”, diz a estudante Marina, de São Paulo. Mesmo assim, ela prefere não se identificar. “Para que as pessoas em São Paulo não pensem que eu desbundei.”

Segundo ela, ver toda a diversidade de corpos “faz com que você entenda melhor o seu, que o que importa é ele estar saudável e te dar prazer. E esse prazer pode estar em algo simples como nadar pelado.”

O verão europeu anda famoso por bater todos os recordes de temperatura. Com o calor na casa dos quase 40°C, tirar a roupa está em alta. “Está meio na moda ficar pelado no lago, tem muito turista e jovem indo”, diz Marina.

Pelada do lado da Kuddam

"Se vou escrever sobre FKK, preciso ficar nua no lago", digo para mim mesma. Moro há quatro anos na Alemanha e, por isso, ver pessoas peladas no verão para mim já é algo completamente natural. Em geral, nesses lugares, faço topless. Em sauna, tiro a roupa sem problemas.

Mas em público, em um parque, não é algo que eu faça. Escolhi fazer isso e experimentar o FKK justamente em um lugar cheio. Trata-se de uma área perto de um lago onde, em um dia quente, cerca de 300 pessoas se deitam ao sol, a maioria sem roupa. Os frequentadores têm todas as idades.

A maioria é formada por pessoas com mais de 40 anos. Algumas têm seus 80. Detalhe: o parque fica ao lado de uma avenida, perto de uma estação de trem e perto da Kuddam, uma das avenidas mais famosas de Berlim, onde estão localizadas lojas de grifes e a KDW, a loja de departamento mais tradicional da Alemanha.

Era uma tarde de 35°C e o parque estava lotado de gente, de roupa e sem. Repito, é uma avenida, dá para ouvir o som de carros e ônibus. Entrei no lago de biquíni e, dentro dele, tirei tudo. Nadei, achei bom, e fiz a parte para mim mais desafiante: saí totalmente pelada da água e assim deitei na minha canga, em que fiquei por alguns minutos.

Nada aconteceu. Um homem sorriu e eu ignorei. Um senhor, também nu, disse algo que não entendi. Também ignorei.

Continuei na minha, lendo meu livro. Depois, me vesti e fui embora. O mais chocante da experiência: foi tudo normal. Não me senti maluca, hippie, nada. Ao lado, um trio de adolescentes, dois meninos e uma menina, chegou de roupa. Lá, tiraram tudo, nadaram pelados e depois se vestiram de novo.

Apesar de não ter sido exatamente uma pessoa encanada com corpo na adolescência, inclusive porque sou magra, o que é socialmente aceito, pensei que essa fase poderia ter sido mais tranquila se fosse como a deles.

Mais naturalidade para aceitar seu corpo

“Se você cresce vendo outros tipos de corpos e pessoas tranquilas com eles, é natural que encare seu corpo com mais naturalidade”, diz Mirian Goldenberg, que reforça que isso também existe, mesmo que em menor escala, também no Brasil.

O artista plástico Marcos Brias, 38 anos, cita a “não-obrigatoriedade” como a coisa mais legal do FKK. É legal que você não é obrigado a ficar pelado. Você pode ficar, assim como as pessoas podem ficar de roupa, o mais importante é saber que não estão te julgando ou analisando. Você não é tão importante. As pessoas apenas estão sem roupa porque gostam, porque está calor. É simples assim.

"O que eu mudei na relação com meu corpo na Alemanha? Agora é mais fácil tirar a roupa”, diz a atriz Mari Rizzo, que mora há mais de 10 anos no país. "Hoje, fico pelada na frente de desconhecidos sem problemas. Tirar o maiô é fácil",

Sim, é simples. Muitas vezes mais do que a gente imagina…