Natalia Timerman

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Reportagem

'Eu sou meu centro': em poemas, Bruna Mitrano mostra o que ninguém quis ver

"Ninguém Quis Ver": a denúncia é o título da coletânea de poemas de Bruna Mitrano lançada recentemente pela Companhia das Letras. Ninguém quis ver, mas ela mostra. Seus versos se embrenham para o lugar de onde os olhos do mundo desviam: para a periferia, para a neurodivergência, para o abuso, a pobreza.

Sua palavra mostra, dá a ver o mundo que no entanto já estava explícito, sem descuidar de si como palavra. Os versos são firmes, sem rebuscamentos, e oferecem um tipo raro de arrebatamento: aquele que se inaugura a si mesmo, surgido antes de se conseguir nomear.

Bruna escreve da periferia do Rio de Janeiro, onde nasceu e vive. Publicou também o livro de poemas "Não", pela editora Patuá (2016), dá aulas e escreve. Aqui, ela conta um pouco do que há entre os versos de seu livro mais recente, conversa lindíssima, que não basta. O que basta é seu livro. Corra atrás.

Seu livro começa longe. Começa a 70 quilômetros do mar, descrevendo as distâncias, os trajetos, e "que só esquece o mar/ quem mora perto do mar". A distância é um fundamento da sua poesia? A distância percorre a poesia ou sua poesia, a distância?
Minha poesia não quer medir, ela quer pesar distâncias. Uma coisa tenho clara: "longe" é um lugar. Se não alcanço determinado objeto, penso: ele está longe. A física garante que a distância entre mim e ele é uma só, mas meu olhar não é panorâmico nem neutro. Eu sou meu centro. Enquanto a ideia de centro existir, enquanto insistirmos nessa ilusão, haverá um lugar-longe, um lugar que não desperta interesse, um lugar que repele, um lugar conhecido por seus atributos negativos; onde vive a população "matável", aquela que pode ser morta -- não necessariamente por mão armada, também por negligência do Estado -- porque já foi invisibilizada, desumanizada, destituída de sua identidade. Eu chamo essa parcela da população de "os sem escolha". Nós, por outro lado, podemos escolher -- é sempre sobre poder, quem pode e quem não pode, quem pode o quê. E quando escolhemos fechar os olhos, sujamos as mãos.

Sua poesia tem algo da voz de sua avó. Ela também parece vir "do mais fundo/ onde uma mulher pode ser". O que é esse fundo? A palavra o toca? Como é ver o que vem de tão fundo na superfície da página?
A mim, interessa a palavra que toca o corpo. E sim, ela pode tocar, porque é corpo também. A poesia acontece nesse encontro, nesse eros. É pura pulsão de vida. E como toda pulsão, ela se manifesta na matéria. Não transcende. Não está fora do mundo. Não é objeto de culto. Tampouco serve para servir. A poesia existe para ser experimentada. Quanto à minha avó, eu quis construir um lugar onde ela pudesse ser. Não ser mãe, filha, avó, mulher. Apenas ser.

Diz-se que toda escrita é autobiográfica. Diz-se que nenhuma escrita é autobiográfica. Onde a sua palavra encontra esse pêndulo?
Escrevo a partir da memória do corpo, uma memória involuntária, que está mais próxima do esquecimento do que da lembrança. Lembrar é voltar ao acontecimento, é um exercício consciente de retorno ao passado. A memória involuntária supera o acontecimento e aponta para o futuro. Esse movimento é inconsciente, e com o inconsciente, sabemos, não há negociação. Por isso, acho arriscado falar em autobiografia. Prefiro dizer que minha escrita tem "tom" ou "caráter" biográfico. Ou que é autoficcional. Porque existe pacto biográfico, existe correspondência onomástica, mas não existe compromisso com a realidade, e sim com a verdade, com a minha verdade. Manoel de Barros tem uma frase que me contempla: "tudo que não invento é falso". A invenção é a verdade da minha poesia.

Eu te contei que uma colega psiquiatra muitíssimo admirada por mim me pediu as referências do seu livro para levá-lo aos seus alunos em uma aula de transtorno de estresse pós-traumático. Os versos que chamaram a atenção dela eram: "o medo do que já aconteceu ainda/ é medo?" Como te soou esse anúncio, o de um poema numa aula, um poema seu, aula de TEPT? A poesia serve? O que a poesia é no mundo? O que ela pode e não pode ser?
Fico feliz em saber que meus poemas estão sendo usados em aula. Ainda mais na área da Psiquiatria! Tem gente que passa mal com a possibilidade de a poesia ter uma função, né? Vejo que existe aí um equívoco, e a culpa é do capitalismo, a culpa é sempre dele (risos). O problema surge quando se confunde função e utilidade, porque a nossa ideia de utilidade se baseia no conceito de prestação de serviços. Eu acredito que a poesia tem a função de transformar - realidades, territórios, vidas. E isso não a limita. A poesia pode ser atemporal e universal sem, contudo, ignorar o contexto histórico e social no qual está inserida. "Somos filhos da época", diz Wislawa Szymborska, "e a época é política". A poesia é um gesto político, libertário. Ela pode ser muita coisa, acredito. Só não pode ser prisão.

Gritar, rebentar, se jogar no chão. "ainda hoje/ carrego com cuidado/ essa coisa/ frágil como um cílio solúvel/ que parece raiva/ raiva de mim". É possível escrever com raiva? No momento da raiva? Sua escrita é uma só, ou é várias, em muitos momentos? Como surgem seus poemas? Como é a história da palavra na sua vida?
Tem uma fala da Djamila Ribeiro sobre a obra dos Racionais MC's que nunca esqueço. Ela diz que eles conseguiram organizar o ódio. A raiva é um sentimento legítimo. Ela movimenta. E pode servir de combustível para a poesia. Para a minha, certamente, ela serve. Porém, essa raiva precisa ser canalizada. Devemos ter claro contra quem ou contra o quê (considerando instituições de poder) estamos lutando, para bem direcioná-la. Para que ela não exploda e atinja quem está do nosso lado. Ou imploda e nos adoeça. Afinal, a raiva é um sentimento destruidor. E por isso mesmo, indispensável à vida, que só é possível graças ao movimento de renovação: é necessário destruir aquilo que não funciona mais, para que novas coisas sejam construídas no lugar.

"Nenhuma explosão toca o corpo/ o que toca é o que é explodido". Talvez seja assim também com a poesia, com sua poesia, que toca como estilhaço, não enquanto explosão (que também é); não enquanto implosão. Dói escrever? Dói ler? Ou é a vida que dói?
Tenho uma degeneração óssea incompatível com a minha idade (o fisioterapeuta disse que, se tenho quarenta anos, minha coluna tem sessenta, e especialmente minha cervical tem oitenta), além de deslizamento de vértebras, compressão medular e uma cirurgia malsucedida - um pino soltando, literalmente. Então, eu diria que a dor é no corpo mesmo. No corpo poesia. Escrever não dói mais do que isso. Também não cura. Mas ajuda a dividir o peso. Quando uma pessoa se identifica com o que escrevo, é como se ela pegasse para si um pouco daquilo que carrego no ombro. Ler é um gesto solidário. Escrever, publicar, pensar sobre literatura (de preferência, coletivamente)? tudo isso me ajuda a suportar a dor.

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Quando a convulsão não é metáfora, como ela vira palavra? Como é a relação do seu corpo com o seu livro? Do corpo com o livro? Do livro com o tempo?
A gente tende a acreditar que perder o controle é experimentar a liberdade. Isso não parece verdade quando você acorda no chão de uma rua movimentada, desnorteada, ferida, molhada de suor, baba e urina, sem a menor condição de voltar para casa num ônibus lotado, mas sabendo que terá de voltar para casa num ônibus lotado. Ser livre é poder fazer escolhas. A epilepsia me ensina sobre liberdade, isto é, sobre o fazer poético. Não posso controlar o corpo. Não posso controlar a poesia. O corpo e a poesia são essencialmente livres. No entanto, diante dessa impossibilidade, posso me colocar em constante exercício de libertação. Para mim, escrever é isto: um exercício de libertação. O livro é consequência.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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