Natalia Timerman

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Opinião

Quando o Corinthians ganhou o mundo: o bando de loucos no Japão

Sou péssima para datas. Meu passado se confunde numa cronologia embaralhada, numa massa informe de anos, mas alguns acontecimentos têm o poder de ganhar de minhas lacunas mnemônicas e se firmar como referência, como marco, como marca. Dezembro de 2012 foi assim.

Depois de uma Libertadores espetacular, impecável, inesquecível, a cujos jogos assisti um a um com meu pai nas arquibancadas do saudoso Pacaembu, nos juntamos ao bando, boa parte de minha imensa e corintiana família, e fomos ao Japão.

Eu ainda não conseguia me dizer escritora — se me dissessem que em dez anos meu nome por vezes figuraria ao lado do de Juca Kfouri e do de Walter Casagrande Jr. neste portal em que você me lê, eu provavelmente não acreditaria. Mas sim, eu já escrevia e, hesitante, escrevi uma crônica — que começava escanteando a mim mesma do rol dos cronistas: "Que me desculpem os cronistas, mas estava fácil para vocês". Que bom que hoje mais mulheres escrevem sobre futebol, narram e jogam; que bom que mais mulheres são assistidas e podem influenciar o jeito dos homens de torcer e quem sabe até de jogar.

Mas voltemos a 2012. Voltemos ao Japão, que parecia habitado por personagens, fossem eles os corintianos ou os próprios japoneses. Talvez o próprio contraste sublinhasse o incomum de cada lado, um espelho contrário em que o único igual refletido fosse a diferença. Daqui, os manos vestidos de Gavião da cabeça aos pés; de lá, os japoneses, contidos, concentrados, repentinamente sorridentes, quase sempre silenciosos.

Já ao chegar, começamos a suspeitar a grandeza do que estava acontecendo. Fotos de portões de embarque de aeroportos de todo o mundo repletas de gente vestindo alvinegro, com um sorriso incomum e um abraço feito apenas de uma paixão compartilhada, já que muitos ali nunca antes haviam se visto. Dentro de cada avião com destino a Tóquio, o mesmo canto: os corintianos entoando, de cinto afivelado, as canções do estádio.

Despontavam histórias. Na escala de Roma, um gavião responde a uma senhora que dissera ser são-paulina, mas que por ser brasileira torceria pelo Corinthians: "Num precisa disso não, mano. Tem 20 mil pra torcer pra nóis. Véia coroca..." Todos, então, achávamos que seríamos 20 mil. Depois, passaríamos a dizer com folga que quarenta? (Sorrio imaginando a cara da senhora, embora hoje tudo seja diferente e eu mesma diga que torci para o Fluminense por ser brasileira.)

Num dos aviões com escala em Dubai, viajava um ex-jogador do Corinthians, que segundo se contou, foi o tempo todo muito atencioso com cada um que o interpelava. Inclusive quando, no meio da madrugada, no escuro do avião, em algum lugar do céu, se escutava, em tom pacaembunamente alto: "ACORDA, VAMPETA!!!"

E, de cada canto do planeta, chegava aquela gente apaixonada, sonhadora, comum, com trajetórias e esforços descomunais para estar ali. Com os olhos acesos de admiração, de medo, surpresa. O multicolorido das ruas de Tóquio parecia - o contraste - ainda mais colorido pela presença da multidão alvinegra que se reconhecia, se cumprimentava, contagiando os japoneses, maravilhados e atônitos; e VAI CURÍNTIA era a frase que fazia a conexão entre os mutuamente incompreensíveis japonês e português. E não só de Tóquio: por todo o Japão essa epidemia apaixonada se alastrava, forte, impressionante e - quem estava lá pode dizer - bela, muito bela.

A noite gelada do primeiro jogo não calou aquela imensidão que se condensava em voz, e que carregava seu mundo para o mundo. Os japoneses são muito acolhedores de mundo alheio, percebi. Era impossível sentar nos lugares marcados, e funcionários do estádio vinham, educadamente, pedir à multidão que se aglomerava no alambrado que se recolhesse cada um a seu lugar. Quando o simpático japonês veio fazer seu pedido pela terceira vez e eu lhe respondi que "sorry, it's impossible", ele proferiu um risonho: "Okay!", seguiu rindo puerilmente e, se ele não estivesse de costas, eu poderia garantir haver escutado, com o já conhecido sotaque japonês, um sonoro "Vai, Curíntia!"

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Havia gente que não saía do saguão do hotel. Devidamente uniformizados, esperavam, ainda mais nervosos depois do primeiro jogo. Todos sabiam que seria muito difícil. Mas todos sabiam também que, só de ter feito parte daquilo, já havia valido a pena.

Assim, brilhando de paixão e medo, os corintianos lotavam os trens que rumavam ao estádio para o jogo final. No caminho, pandeiro, saquê, cerveja e o canto comum, de Itaquera para Yokohama. Não foram poucos os torcedores azuis que paravam para filmar e fotografar as inúmeras pequenas concentrações que se faziam, a festa corintiana que acontecia muito antes de qualquer vitória. Aquilo era mágico.

E a magia irradiou para o gramado, e o canto reverberou nas palavras do destino, e São Jorge se presentificou nas mãos de Cássio e na cabeça de Guerrero, guerreiros tanto quanto qualquer um vestindo o mundo de preto-e-branco, ali ou seja onde fosse. Um time consistente mesmo com a desigualdade de investimentos? A sorte? Corinthians: o inexplicável. Um momento fora do tempo, fora do espaço.

Só um jogo de futebol? Cada um vê a vida como quer. Mas quem vestiu alvinegro certamente soube o significado daquilo, do tudo que sonhamos, do nada que somos, e no entanto estávamos ali, juntos, nascendo o sol de um jeito nunca, nunca, nunca antes visto. E escutar meu pai chorando, gritando que vivera depois de três infartos para ver o Corinthians campeão do mundo, escutar meu próprio grito enlouquecido perdido no grito comum da multidão, aquilo era a Felicidade.

Antes de minha partida para o Japão, escutei numa conversa qualquer que era absurdo alguém vender o carro ou pedir demissão pra ver um jogo de futebol. Minha resposta atrasada seria uma pergunta: mas qual o sentido da vida, se não o que se faz juntando um punhado de momentos como esse? Se é verdade que diante da morte passa um filme, no da minha constarão as horas com minha família no ônibus a caminho do estádio, o monte Fuji e seu topo nevado pela janela, a faixa da Gaviões da Fiel, meu pai deitado no chão da arquibancada, ofegante de tanto gritar.

Depois que ele morreu, parei de ir ao estádio. Não lidava bem com os mesmos rituais sem sua presença, nem com a venda de alguns jogadores cuja presença passara a fazer parte do panorama da minha vida (sofri quando venderam, por exemplo, Paulinho e Cristian).

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Meu companheiro é palmeirense, mas meus filhos são corintianos. Não fiz muito esforço para que fossem. Talvez seja inato, talvez seja genético. Ou o significado de família, de amor, simplesmente ultrapasse os genes.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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