A literatura diante da dor: dois livros sobre adoecimento e morte
O que se faz quando não há mais nada a se fazer?
Escreve-se. Pelo menos é o que a brasileira Julia de Souza e a norueguesa Hanne Ørstavik realizaram quando diante do adoecimento de pessoas fundamentais em suas existências. Cada uma à sua maneira usou a própria vida como matéria de seus livros, o de Julia um ensaio e o de Hanne, um romance.
Em "John", publicado recentemente pela editora Âyiné, Julia de Souza rememora com palavras escolhidas com minúcia, perfeitamente econômicas, o tempo em que presenciou o desfazer-se da memória do pai. Investiga a demência dele e as suas crises psiquiátricas, investiga o que acontece com a linguagem em cada uma delas. Coloca sua dor em dúvida, questiona o ato de escrever, passando longe da autocomiseração.
Já Hanne Ørstavik, em "Ti Amo", traduzido do norueguês por Camilo Gomide para a editora Aboio, encara a degradação do corpo de seu marido por um recém-diagnosticado câncer de pâncreas. Quando enfim encontra o amor — seu editor italiano, com quem foi morar em Veneza; quando enfim encontra alguém a quem pode dizer: "Você, que está sempre ao meu lado. Você, que faz da noite e da escuridão um lugar nosso naquela cama grande, um lugar onde eu posso tocar você, sentir que você existe, estar segura. Você, que é minha casa e meu céu", essa pessoa adoece, essa pessoa vai morrer, ainda que naquela casa não se fale da morte.
Ørstavik escreve no momento presente, instaurando palavras para ocupar o silêncio que vige na casa em que um corpo se desfaz. De Souza escreve depois, "sobretudo de forma retroativa. Durante os dez anos da sua doença, com exceção dos seus últimos dias em que ficou hospitalizado, não fiz nenhuma anotação organizada de seus sintomas, das situações que eles provocavam ou da minha reação emocional diante dessa perda lenta e progressiva."
Ambas tentam, com as palavras, tatear, compreender, respeitar a incompreensão e a incredulidade diante da doença daqueles homens entranhados em suas vidas. Ambas alcançam dizer a especificidade de sua dor, sem deixar de enunciar algo que diz respeito à humanidade: a fragilidade do corpo, da mente, o fim tantas vezes triste de cada vida; a inexorabilidade da deterioração, a precariedade de qualquer plano.
Julia diz de seu pai: "o desamparo infantil, o descontrole, o gemido e não a palavra — foi o que se impôs, sorrateiramente. A demência é uma espécie de vingança do passado, ou um acerto de contas com a natureza: se em algum momento acreditamos ter nos diferenciado do selvagem, a demência, indomesticável como uma erva daninha, chega para afrontar qualquer ideia de autodeterminação humana."
"O que eu escrevo precisa ser verdadeiro", afirma Hanne, mas bem poderia ser Julia. Pois ambas instauram a literatura como verdade, acima, talvez, da doença e da morte.
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