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Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A ficção é o único lugar de existência legítima de narradores machistas

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista de Universa

11/11/2022 04h00

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"Até quando as mulheres serão apresentadas dessa forma desonesta por homens?" Quem faz a pergunta é Rodrigo S. M., o narrador que Miguel Sanches Neto tomou emprestado de "A Hora da Estrela" como pseudônimo do seu em "O Último Endereço de Eça de Queiroz", romance que acaba de ser publicado pela Companhia das Letras.

Mentiroso, inseguro, autorreferente, cínico e trapaceiro, Rodrigo é um narrador interessantíssimo que nos guia por suas erráticas andanças em Portugal, onde chega depois de aplicar um golpe na prostituta que gostaria de chamar de namorada dizendo a ela que seu projeto de escrita havia sido selecionado por uma fundação.

Mas Rodrigo mal chega a escrever, para além de anotações esparsas e uma carta. Ele vaga, perdido, em busca de mulheres que o confundem, o excitam e diante de quem exerce seu machismo contumaz, como quando seu "perigoso inimigo", o pênis, se empolga diante da imagem de uma Santa que amamenta ou quando oferece dinheiro para lamber a garçonete que o servia.

Rodrigo vaga principalmente em busca de uma história, celebrando construções que não existem mais ou cujo enaltecimento, ao seguir o rastro dos escritores que constituem o panteão da literatura portuguesa, faz soar como ridículo: "Eu tinha vindo à Europa para acariciar prédios." Miguel Sanches Neto opera, em seu romance, uma espécie de elogio da literatura às avessas, apontando constantemente seu anacronismo e falta de lugar e confirmando, por meio de seu narrador, que o cânone literário é também, afinal de contas, a validação de muitas e constantes exclusões.

A beleza das frases de Sanches Neto pende entre a ironia e a confirmação, levantando constantemente a suspeita de quem lê. As cenas de amor são risíveis, ainda que belas; belas porque risíveis, talvez, brutas, conscientes de sua insuficiência: "Um gosto de uvas e gordura insiste em minha língua, intensificando o que há de podre em todo beijo." O diálogo entre os passageiros prestes a deixar o Brasil no avião e a celebração do aniversário de Hitler em que Rodrigo vai parar causam desconforto por serem tão absurdos quanto verossímeis, em tempos de um suposto patriotismo assentado em fake news e ideias de extrema-direita.

Conheci Miguel Sanches Neto e seu último livro por ocasião da Festa Literária Internacional de Maringá, onde dividimos uma mesa. Último livro em todos os sentidos: depois de publicar mais de 30 títulos, ele afirma que não escreverá mais, ao menos não para publicar, para que a literatura não compita mais com sua família e seu tempo de lazer. Em nossa conversa, mediada pela escritora Michelle Joaquim, eu disse que não acreditava, que considerava quase impossível um escritor abandonar seu ofício.

Mas agora, depois de ler esse livro, interpreto o gesto de Miguel de outra maneira. Quando ele começou a publicar, havia pouco espaço no meio literário para as mulheres, ele mesmo afirmou em nossa conversa; hoje, todas as cinco finalistas do prêmio Jabuti, do qual ele próprio foi jurado, são mulheres, assim como as quatro representantes brasileiras na lista de finalistas do Prêmio Oceanos.

Se é possível extrair de dentro da narrativa o motivo para o silêncio vindouro do autor, a imagem de Rodrigo, perdido pelas ruas de um país celebrado por seu passado, parece se referir também à sensação de um homem que tenta escrever hoje: "Eu fora expulso da contemporaneidade. Enxotado do agora, como um cão que pertence a outro espaço e é obrigado a farejar as ruas sujas da cidade".

O desconforto de Rodrigo diante das mulheres a quem só lhe resta trapacear se transforma no silêncio irônico da escrita que não acontece, o que poderíamos, então, expandir para um contexto mais amplo. Que fique claro: não estou dizendo que os homens tenham que deixar de escrever nem de serem lidos; não estou dizendo que devamos abrir mão dos autores que já narraram histórias de personagens mulheres de forma magistral. Não estou disposta a isso; não estou disposta a abrir mão de Madame Bovary, Anna Kariênina, das personagens de Isaac Babel, nem de Moll Flanders, nem de Diadorim, nem de Capitu, nem de boa parte da literatura, até há pouco tempo ocupada majoritariamente por homens.

Não estou dizendo sequer que narradores machistas como Rodrigo devam deixar de existir, pelo contrário: a ficção é seu único lugar de existência legítima. Estou dizendo apenas que as mulheres também estão, enfim, escrevendo; ou melhor, que seus escritos estão finalmente deixando as gavetas para ganhar leitores, prateleiras e prêmios, para dizer o mundo segundo sua própria dicção, tanto na ficção quanto fora dela.

E talvez Miguel Sanches Neto saiba disso, e por isso seu narrador se descreve como os andarilhos, que "desaparecem de uma vez, no meio do percurso", sem acesso a onde será o fim.