Natalia Timerman

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Opinião

O Beira-Rio histórico das mulheres: a punição do Inter que virou festa

Um mundo só de mulheres já existe na ficção. Em "A Segunda Mãe", de Karin Hueck, lançado recentemente pela editora Todavia, os homens não participam do cotidiano. Mas trata-se de uma distopia, da invenção de um mundo estranho e bizarro, ainda que diga tanto sobre o nosso.

Um estádio ocupado só por mulheres também soa como ficção, mas é real. Ou foi, pelo menos por um dia: o último 27 de janeiro, quando o Beira-Rio foi tomado por um coro diferente, tão enérgico quanto o habitual, mas feito de outras vozes. Apenas vozes femininas.

Quando meu amigo Pedro Lima me enviou os impressionantes vídeos das arquibancadas cheias de gurias, como as chamam os gaúchos, já emendou a explicação: em Porto Alegre praticamente não há brigas de torcida. Tudo é filmado e julgado na mesma hora, há juiz, promotor e defensor público em um fórum ali mesmo dentro do estádio. Mas houve uma desavença, no final do ano passado; como punição, o Internacional precisou abrir mão de sua torcida masculina por um jogo.

Punição estranha, que virou festa, uma festa linda e emocionante feita pelas gurias, acompanhadas de crianças, idosos e pessoas com deficiência. A advogada Gabriela Pires, de 29 anos, esteve lá com as amigas e conta que havia uma atmosfera diferente, um ambiente mais calmo e familiar. "Mas isso não significa que a energia foi mais baixa: eram nítidos o entusiasmo e a paixão que move também a mulher colorada", ela ressalta. "Cantamos o jogo inteiro e mostramos que não precisamos de homens para levantar o estádio."

"O que seria do futebol se fosse sempre assim?", perguntei a Gabriela. "É difícil responder: o futebol se desenvolveu a partir dos homens, mas evoluiu muito com a participação maior e mais ativa das mulheres", ela pondera. "Eu vou ao estádio desde os 11, 12 anos, e é muito perceptível como as coisas mudaram e as gurias não são mais exceção".

Gabriela comparece a quase todos os jogos do Internacional desde que tinha 15 anos, quase sempre com duas amigas. Nem elas nem eu queremos que o futebol seja um ambiente exclusivamente feminino, mas sim que seja seguro para todas as mulheres. "O esporte tem muito de união em torno de uma paixão comum, e o mais legal é ver a integração entre tanta gente, de tantas origens, idades e gêneros, e o futebol perde tirando qualquer um deles", reflete Gabriela, que explica que o Inter já tem há tempos uma torcida exclusivamente feminina, a Força Feminina Colorada, mas não vê necessidade de espaços só para mulheres. "O que precisa é manter o respeito entre todos, em qualquer setor."

A empresária Eduarda Schapke, de 29 anos, é uma das amigas que acompanham Gabriela ao estádio e também esteve no jogo, cantando desde fora do estádio, de onde as imagens e sons são belíssimos, de instrumentos sendo tocados somando-se às vozes todas juntas de uma multidão. Ela percebe que a presença das gurias incentiva que mais mulheres e crianças compareçam aos jogos por se sentirem mais seguras, além de oferecer outras perspectivas para o esporte, dentro e fora do campo.

O coro surtiu efeito: o placar contra o Ypiranga foi de 3 a 0, numa tarde inesquecível. "Estamos acostumadas a ser a minoria, e foi uma sensação diferente ser, pela primeira vez, a imensa maioria. Também somos apaixonadas pelo futebol e pelo Inter. O estádio pode ser um ambiente feminino sem perder a energia", afirmam Gabriela e Eduarda.

Concordo com elas: futebol também é coisa de mulher.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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