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Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

No palco, um reencontro inusitado muitos anos depois

A escritora israelense  Ayelet Gundar-Goshen e Natália Timerman - Divulgação
A escritora israelense Ayelet Gundar-Goshen e Natália Timerman Imagem: Divulgação

Colunista de Universa

14/10/2022 04h00

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Eu teria a honra de dividir o palco com Ayelet Gundar-Goshen, a atração internacional do Primeiro Festival de Literatura do Museu Judaico, que aconteceu semana passada em São Paulo. Eu já havia resenhado seu último romance, "Outro Lugar" (Todavia), que gravita ao redor da reflexão: uma mãe costuma se perguntar quem poderá fazer mal a seu filho, mas pouco se pergunta se seu filho poderá fazer mal a alguém. Eu sabia que estaria diante de uma grande escritora.

Eu leria também um trecho do meu novo romance, depois de mais de um ano falando em público quase que exclusivamente sobre meu livro "Copo Vazio". Falar sobre algo novo é sempre um desafio; foi só depois de muitas mesas, debates e podcasts que parei de sentir o coração acelerar antes de dizer a primeira palavra. E até hoje, por detrás da minha voz que pode parecer segura, há a cada vez o receio de dizer uma grande bobagem, de colocar tudo a perder sob os olhos do mundo, pois ainda que uma experiência se repita muitas vezes, estar viva é estar inevitavelmente submetida ao signo da primeira vez.

Eu estava assistindo à mesa anterior à nossa, evitando pensar muito no que viria, me deleitando com a conversa entre Sueli Carneiro, Eva Blay e Bianca Santana (que assinou a sublime curadoria do festival ao lado de Fernanda Diamant), quando me chega uma mensagem de Nathalia Pazini, assessora de imprensa da Todavia: a Ayelet chegou.

Levantei-me em silêncio, me direcionei à saída da sala, e Marília Neustein, a assessora do Museu Judaico que havia trazido a escritora israelense do aeroporto, se pôs a me acompanhar até onde ela estava. "Ela disse que já te conhece", me contou Marília. Meu livro ainda não foi publicado fora do Brasil; eu tive a mais absoluta certeza de que Ayelet estava me confundindo com alguém.

Ayelet se levantou quando entrei na sala, colocou as mãos nos meus ombros, disse que eu continuava como ela se lembrava. Ela está louca, pensei em silêncio. Eu tinha certeza de que nós nunca tínhamos nos visto antes.

Sentei-me, como ela, ao redor de uma mesa, junto de Nathalia, Marília, Leandro Sarmatz. "Deve ser da Flip", ele aventou, tentando remediar o constrangimento estampado no meu rosto. "No, it´s not from Flip", asseverou Ayelet.

Genial como só ela, sem querer estragar o suspense, o absurdo, a magia que começava a se instaurar, Ayelet se propôs a me dar uma dica. "Você me indicou um filme, um filme que adoro até hoje." Minha incredulidade começou a claudicar quando escutei, em seu sotaque israelense, "Waking Life", de Richard Linklater, um filme a que assisti inúmeras vezes nos meus 20 anos e que, sim, eu certamente poderia ter indicado. Eu me sentia dentro do próprio filme, como se estivesse em um sonho, não conseguindo alcançar a realidade do que estava acontecendo.

Tudo era estranho, bonito e engraçado ao mesmo tempo. E também aflitivo. A aflição de percorrer a memória, de procurar o rosto de Ayelet Gundar-Goshen, de não o encontrar.

"Nós dançamos de madrugada na Vila Madalena", era a outra dica. Amnésia alcoólica?, pensei envergonhada. Para que parte do cérebro, para que lugar do corpo, para que região da vida vão as coisas que vivemos e das quais não conseguimos nos lembrar?

"Foi em 2005", continuou Ayelet, o que me deixou de alguma forma aliviada, pois 17 anos são tempo suficiente para que as lembranças possam ir ficando pelo caminho. Mas como ela se lembrava de mim?

E então ela disse o nome de um ex-namorado meu, de quem em 2005 ela namorava o primo, hoje seu marido, pai de seus três filhos; e contou que em 2005 eles vieram ao Brasil e nós quatro saímos à noite, dançamos de madrugada, assistimos três vezes a "Waking Life. "Nós ainda não tínhamos filhos", ela sorriu diante do arregalar dos meus olhos. Me veio à mente um lampejo, uma cena, o finado bar do Cidão, na rua Deputado Lacerda Franco. Sim, sim, sim, ainda que apenas um lampejo, sem detalhes, sem entorno, um caco, vestígio de memória apenas.

E você se lembrava?, perguntei, entre aliviada, constrangida e preocupada. Ayelet contou que foi minha ex-sogra, na casa de quem ela estava ficando, situada ainda no mesmo endereço, quem expressou a surpresa ao saber que estaríamos no mesmo palco, no mesmo palco depois de tantos anos.

Mas o mais bonito Ayelet disse depois: quando nos conhecemos, nós ainda não éramos quem somos. Foi um pouco antes de entrarmos na vida, foi um pouco antes de chegarmos ao mundo como quem chegaríamos a ser. Eu estudava medicina em 2005; ela estudava psicologia. Não éramos mães. De escritoras, só tínhamos a vontade, só tínhamos o sonho. Apenas queríamos escrever.

Foi um pouco antes de nos tornarmos quem somos. Ou o oposto: éramos, ali, com 20 e poucos anos, antes das nossas realizações, quem nunca deixaremos de ser. Essas meninas-mulheres, essas criaturas ávidas, inseguras, que amam e querem e devoram. Essas pessoas que esquecem. Mesmo ocupando o palco principal.