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Opinião

Minha história com Luiz Taliberti, um dos 272 mortos em Brumadinho

Eu a vejo e meu corpo é percorrido pelo contrário de um calafrio, porque é quente. Um reconhecimento imediato, a familiaridade que junta o presente com o passado, mesmo um passado que nunca existiu, pois é a primeira vez que tenho Helena Taliberti diante de mim. Sua beleza salta, chega antes dela, que não se parece exatamente com o filho, mas há algo no rosto de ambos que é comum — provavelmente a beleza, anunciada por traços outros em cada qual.

Durante segundos em que cabe tudo, percorro a memória atrás de uma noite antiga. O sorriso: o primeiro que encontro. Studio SP, uma casa de shows que já não existe. Ele com amigos, eu também, a amiga dele, irmã mais nova de uma amiga minha, que nem estava lá. Falar alto para ganhar da música, eu muito mais velha que ele, recém separada do primeiro casamento. A voz doce, a doçura no olhar. Não me lembro de onde nos beijamos, nem como, lembro dele me comprar uma cerveja, talvez, me esperar na porta do banheiro, lembro de subirmos a Augusta a pé de madrugada até minha casa, bêbados, isso sim, felizes, sim, de mãos dadas. Lembro dele dizer que todos os homens deveriam gamar em mim, lembro de me enternecer um absurdo e pensar em silêncio 'ah, Luiz, mal sabe você'.

No impulso que sempre carrega uma história muda, digo a Helena, assim que ela entra no camarim do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc: 'eu conheci o Luiz'. Ela me olha, ela sorri, ela está de prontidão para saber mais, pois uma mãe que perde um filho está sempre de prontidão para saber mais. Eu tive uma história amorosa com o Luiz, há muitos e muitos anos.

Ela se surpreende, o sorriso se modifica, olha para o Vagner, igualmente incrédulo ao lado dela (que casal bonito, penso sem pensar).

Estamos atrasadas para começar a atividade, pois a chuva torrencial transtornou a cidade e eu só consegui chegar a tempo porque saí do táxi e fui a pé. Rachel Gouveia está para chegar, Daniela Arbex chegou agora; dividirei com elas o microfone da atividade. Helena e Vagner contextualizam como a conheceram: Daniela é autora de "Arrastados", livro-reportagem sobre a tragédia criminosa de Brumadinho, em que 272 pessoas morreram arrastadas pela lama em janeiro de 2019, e entrevistou Helena, que perdeu os dois filhos, a nora grávida e o ex-marido. Dia 25 de janeiro, dia em que eles morreram e morreu também a vida de Helena, aquela vida que ela conhecia.

Tento contar tudo, tudo o que é possível lembrar. Foi Luiz que não quis continuar a nossa história, tendo ele, enfim, entendido que o amor era (talvez ainda seja) difícil para mim. A memória não ajuda, depois de tantos anos. Fazemos as contas, Helena e eu, de quando podia ter sido; Vagner diz se lembrar de Luiz, sempre discreto, comentar sobre um relacionamento com uma mulher mais velha. Mas você só era seis anos mais velha que ele, não é tanto, Helena diz; eu tinha 30, ele 24, naquela idade a diferença parecia gigante. Procuro no celular, no Facebook, qualquer rastro da nossa história. Descubro que foi no final de 2011, começo de 2012, eu estava separada fazia uns três ou quatro meses.

Em janeiro de 2019 descobrimos que o câncer do meu pai havia voltado, e que já não havia mais chance de cura. Diante das notícias de Brumadinho, lembro de pensar que era muito triste o fim da vida do meu pai, mas não era trágico. Tragédia era outra coisa. Tragédia era Brumadinho, era morrer jovem e de repente e criminosamente arrastado pela lama, era morrer de tiro indo para padaria por ser preto. Doía muito perder meu pai, mas não, não era trágico. Havia até alguma beleza no fim de uma vida rodeado pela família, para além da dor, do sofrimento, da tristeza. Em Brumadinho não. Ali não havia beleza alguma.

(Ainda que Helena e Vagner tenham transformado na beleza possível a falta avassaladora, fundando o Instituto Camila e Luiz Taliberti.)

Exatos seis meses antes da enxurrada de lama, me hospedei com minha família na Nova Estância, a mesma pousada onde estava Luiz, sua esposa grávida Fernanda, sua irmã Camila, seu pai, sua madrasta. A mesma pousada que veio abaixo, que simplesmente deixou de existir. Tenho guardado até hoje no celular um vídeo dos meus filhos escovando os dentes no banheiro, dando risada, a câmera alterna de um para o outro, teria sido o mesmo quarto? A morte presente a todo tempo em todo lugar, mesmo e principalmente nos momentos mais felizes.

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Quando duas pessoas se cruzam sempre resta a sensação de que o encontro pode acontecer de novo. Eu demorei alguns dias para saber que Luiz Taliberti, meu amor fugaz, estava entre as vítimas. As pernas não bambearam, porque eu estava sentada, o que bambeou foi a alma toda, foi o tempo — lembro da voz rouca da minha amiga, lembro da cena que inevitavelmente imaginei, o corpo dele sendo levado de helicóptero, o corpo dele, o corpo que abracei, beijei, acariciei, aquele mesmo corpo quente, com o qual o meu se aninhou para dormir, agora morto, enlameado, frio.

Me pego de repente percorrendo o caminho inevitável do se. Se eles não tivessem vindo da Austrália. Se eles tivessem escolhido outro dia. Se as malas da esposa não tivessem se perdido, e então eles não tivessem atrasado e estado na pousada naquele exato momento. Se a Vale tivesse tomado as providências necessárias. Se. Se. Se. Cada dia, cada vida, cada história, cada morte é uma combinação totalmente absurda de ses.

Ela e Vagner riem, dizendo que meu filho de 13 anos poderia ter sido neto deles.

Digo a Helena que tenho uma memória, talvez inventada. No meio de frases soltas, talvez Luiz tenha me dito (numa das nossas noites, no meu quarto da casa antiga, no escuro) que morreria cedo. Nessa ficção talvez verídica, eu ficava espantada com a serenidade dele me dizendo isso; sem medo algum, em paz, o mesmo olhar doce.

Posso te dar um abraço?, pergunto a Helena.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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