Sobre a Enel e a falta de luz: quando o futuro se parece com o passado
Se você está lendo este texto, a luz provavelmente está funcionando na sua casa. Você nem sequer está pensando na corrente elétrica que entra pelos fios e faz funcionar internet, ventilador, portão, chuveiro e geladeira e da qual só percebe depender tanto quando falta.
Eu estava no meio de um atendimento na última segunda quando a luz apagou. No intervalo, desci para tentar descobrir o que estava acontecendo, e encontrei no caminho um senhor e três senhoras descendo oito andares de escada. Sob o calor escaldante de um dia ensolarado e sem brisa, escutei que a Enel, ao invés de informar que ainda não sabia a causa, justificara que a queda de energia se devia aos fortes ventos e chuvas. Na volta para a minha sala, me dei conta de que estava trancada do lado de fora.
Muitas horas se passaram até que a energia fosse restabelecida em 38 mil residências de São Paulo. Chegou a faltar luz por mais de 24 horas na Santa Casa da Misericórdia, que precisou dispensar pacientes e cancelar cirurgias eletivas. Em muitas casas, a luz demorou dias para voltar; em outras, voltou para ser logo interrompida mais uma vez. Alimentos e bebidas estragando, estabelecimentos comerciais acumulando prejuízos, uma Enel privatizada e precarizada culpando uma Sabesp que parece estar sendo precarizada para seguir o mesmo caminho.
Fui carregar o celular num restaurante na rua de cima, onde a luz não chegou a faltar. Que uma casa tenha energia e outra a poucos metros não tenha faz pensar que as redes de fiação elétrica mimetizam a aleatoriedade do que chamamos destino. Ali, a vida acontecia normalmente, o que me pareceu estranho, descabido, como se essa tal normalidade fosse mais uma dádiva que um pressuposto.
Encontrei um colega com quem havia trocado mensagens sobre a falta de luz no ônibus, alguns dias depois — como se São Paulo fosse de repente uma cidade pequena, como se a vizinhança instaurada pela falta de energia continuasse vigendo. Acho que vou escrever sobre aquilo, eu disse. "Escreva, porque assim vai ser o futuro. Com a crise climática, vai ser cada vez mais frequente: viveremos sem luz", ele previu, sombrio e realista. O futuro vai parecer cada vez mais um longínquo passado.
Em novembro de 2023, houve um apagão — esse sim pelas chuvas — que deixou milhares de pessoas até 72 horas sem energia nesta mesma São Paulo.
Na própria segunda-feira, de dentro do ônibus, passei por lugares onde já havia e onde ainda não havia luz. Tanto depende disso, a vida de cada pessoa depende da competência de instituições que — essa tenebrosa situação parece provar — não deveriam ter o lucro como principal objetivo. Serviços essenciais deveriam ter uma regulamentação especial.
Aqui escrevo eu, abajur aceso, computador ligado. Enquanto isso, muitos estão no escuro (este texto será lido domingo, mas está sendo escrito quinta à noite; neste caso o presente da escrita não é uma ficção). Nossa condição escancarada: a vida normal sempre possível; a vida "normal" sempre ameaçada.
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