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Juliana Borges

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'BBB 22': Eslovênia para casar. Maria para transar. Natalia para trabalhar

"BBB 22": Natália expressa receio com repercussão de sexo no reality - Reprodução/Globoplay
"BBB 22": Natália expressa receio com repercussão de sexo no reality Imagem: Reprodução/Globoplay

Colunista de Universa

21/02/2022 04h00

Como as dinâmicas que acontecem dentro da casa mais vigiada do Brasil poderiam caber em uma coluna sobre o meu casamento? Nos últimos dias, várias coisas aconteceram no "BBB 22" que me chamaram a atenção. Mas, uma coisa que ficou incômoda e inevitável de pensar é em uma dinâmica que escalona e classifica mulheres. Por que Natália causa tanto incômodo, ao ponto de toda uma casa, e até uma outra participante negra, terem a eleito como o inimigo interno a ser combatido?

Natália é uma mulher negra retinta. E tem uma história de fôlego para demonstrar como teve que criar uma armadura para lidar com o mundo. Natália tem questões com as quais me identifico: a ideia de achar que precisa aguentar tudo e que seus sonhos se traduzem na realização de sonhos familiares. Do ponto de vista particular, nenhum problema nisso. Mas do ponto de vista sistêmico, vemos aí uma dinâmica que impõe às mulheres negras retintas de ter que lidar, desde muito pequenas, com o estereótipo de que devem cuidar dos outros, as trabalhadoras com força e capacidade de aguentar qualquer coisa. Nesse sentido, a assertividade e modo de lidar com o mundo, já se protegendo preventivamente, de Natália é visto como arrogância e como agressividade.

Um exemplo é a história que envolveu Eslovênia, Lucas e Natália. Todas vimos Lucas com Natália na piscina durante o dia e à noite, em uma festa, escolhendo Eslovênia para receber o beijo, para ser a mulher a ser apresentada ao grupo. Posteriormente, o estereótipo sobre a mulher negra raivosa ficou explícito quando Natália e Eslovênia conversaram e a última disse que tinha medo de Natália e, pior, não saber explicar o motivo disso. Mas, nós, mulheres negras retintas, sabemos.

A construção histórica de que somos fortes, resilientes e agressivas serve como imagem de controle para desumanização de mulheres negras retintas. E é isso que estamos assistindo no "BBB 22" em relação a Natália.

A outra questão que me incomodou muito sobre como a casa vem tratando Natália foi o comportamento de Maria. A sister já foi expulsa pela agressão. Mas a questão para reflexão persiste. Em geral, falamos muito sobre como é importante que mulheres negras se reconheçam em suas dores.

A dororidade, conceito formulado pela pensadora Vilma Piedade, é desenvolvida como as experiências de dor e dos estereótipos que temos que lidar enquanto mulheres negras. Nos reconhecemos nessas experiências e, ao racionalizar esses processos, construímos comunhão e coletividade. Mas o que vimos na relação Natália — Maria foi a reprodução da lógica explicada por um outro conceito: o de colorismo.

O colorismo, segundo a pensadora Alessandra Devulsky, é uma complexa tecnologia de racialização a partir de diferenças e de classificação que cria uma hierarquia tanto entre grupos distintos, por exemplo brancos X negros; quanto internamente nos grupos, os de pele clara X os de pele escura.

Como a autora define, é um "subproduto rançoso" do racismo. Ou seja, nessa tecnologia de gradação racial, o branco é a norma e, no caso do texto, a mulher branca, Eslovênia, é a norma, a que deve ser desejada, beijada e compreendida em seus erros. A mulher negra de pele clara é a que deve ser desejada para a realização sexual, como um objeto "da cor do pecado". E, caso essa mulher celebre e viva sua sexualidade como bem entender, deve ser julgada, mesmo que socialmente tenha sido historicamente tratada de forma objetificada.

E entre Maria e Natália, o que percebi foi a reprodução de uma dinâmica própria do colorismo, em que a pessoa de pele mais clara, acredita ser parte do grupo que alveja a mulher retinta, aquela à qual essa mulher, de pele clara, deveria, no mínimo, reconhecer-se, já que suas experiências de desumanização e objetificação se aproximam muito mais do que se afastam.

Por isso, a violência de Maria em relação à Natália me doeu tanto. Por perceber ali uma profunda alienação diante das dinâmicas raciais e das tecnologias do racismo. Do exercício do auto-ódio explicitado pelo ódio que projetou naquela que tem mais semelhanças do que diferenças. Maria não jogou um balde de água suja apenas sobre Natália. Maria jogou um balde de água suja sobre ela mesma também, já que o julgamento para pessoas negras, sejam elas de pele escura ou de pele clara, sempre recai de forma certeira e firme.

O título desse texto remete a um ditado conhecido, mas que extraí da tese de doutorado de Ana Claudia Lemos Pacheco, em que ela analisa escolhas afetivas e a solidão de mulheres negras em Salvador. Segundo o resumo de seu trabalho, a análise foi desenvolvida a partir de estudos que apontaram que o quesito raça/cor impacta na "preferência afetivo-sexual de parceiros".

Ou seja, mulheres negras, notadamente as retintas, viviam, e vivem, sem parceiros/as afetivos/as fixos ou relações estáveis e até sob um celibato involuntário, se comparadas a mulheres de outros grupos raciais. É essa a dinâmica que faz Lucas escolher quem deve ser beijada, Eslovênia e não Natália.

É essa a dinâmica que faz a casa decidir quem deve ser compreendida em seus erros, mesmo que esse custe centenas de estalecas e milhares de reais, enquanto que outra deve ser preterida de qualquer possibilidade de afeto e aguentar violências verbais de todo um conjunto, até o ponto de uma violência física por parte de uma outra mulher que deveria compreender sua dor. E tudo isso sem a sororidade de suas outras companheiras negras, que até então se apresentavam como suas amigas.

É essa mesma dinâmica e tecnologia que explica porque Jojo Todynho, uma mulher negra retinta e gorda, recebe tanto ódio pelas redes sociais, fofocas e descrédito sobre seu casamento e o amor recebido pelo seu marido. É essa dinâmica que corrobora que Natália aguenta tudo, que Maria é a baladeira e festiva de uma noite, e que Eslovênia deve ser perdoada e compreendida, mesmo que cometa os maiores absurdos.

E isso tudo tem muito a ver com o meu casamento, com o fato de eu achar importante escrever sobre ele, de eu achar importante ter uma festa para celebrar o amor. Porque eu, uma mulher negra retinta como Natália, gorda como Jojo Todynho, mereço o amor e percebo o quanto esse exercício do amor vai de encontro a uma sociedade marcada pelo racismo, que acha que eu mereço um balde de água suja na cabeça.

Eu termino com a pergunta de Douglas Silva para Paulo André: se fosse Natália, e não Eslovênia, a quebrar uma câmera e fazer toda a casa perder tantas estalecas, qual seria a reação de todos ali?