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Juliana Borges

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como uma feminista ativista consegue planejar o casamento em ano eleitoral?

PeopleImages/Getty Images/iStockphoto
Imagem: PeopleImages/Getty Images/iStockphoto

Colunista de Universa

04/07/2022 11h20

Sempre que me apresento, em qualquer lugar que seja, falo de duas coisas que considero qualificações: "escritora e feminista". Em situação ou outra, há coisas que deixo passar como, por exemplo, ser microempresária. Talvez por algum preconceito, mas mais provável que por um descostume em relação a isso. Mas a questão da escrita e do feminismo me atravessam.

Por muitos anos de minha vida, fui uma atuante militante feminista. Reuniões, plenárias, encontros, conferências, debates, grupos de estudos e atos, muitos atos.

Muitas são as vezes em que me questiono se a questão da escrita não seria uma qualificação pelo trabalho, o que acho extremamente redutor do que sou e do que qualquer pessoa seja. A gente não é, nem pode ser, o que fazemos no trabalho. Mas, eu volto para a escrita porque essa é quase uma característica, um elemento de personalidade. Escrever é como respirar. E, nesse sentido, não entendo o ofício como carga pesada de trabalho.

O feminismo está associado porque um movimento que me ajudou a moldar muito do que sou, muito de como vejo, percebo, interajo e avalio o mundo. Até como sinto o mundo. Particularmente, no caso do feminismo, hoje mais como uma ética de minha vida, eu já passei por muitas fases, como a fase militante.

Para mim, o movimento feminista é plural, com diferentes vertentes, mas também um movimento cultural, filosófico, ético e político. Ético porque demanda uma ética feminista. Porque modifica tudo em nós. E político porque o feminismo não é apenas sobre a libertação feminina, mas sobre uma libertação da sociedade do patriarcado, enquanto um sistema organizador pela hierarquia de pessoas, de gêneros.

Escrevo tudo isso para dizer que, ao passo que a escrita é como respirar, o feminismo é uma parte de minha vida que moldou muito do meu caráter e de como organizo meu mundo particular e motiva minhas relações ao redor.

Então, você imagine eu, tendo no feminismo esse paradigma de ação, casando em um ano como esse. Ano "como esse" porque se a ideia, o cerne, do feminismo é mudar a sociedade e o mundo, significa que momentos de disputas eleitorais são bem importantes para feministas. Ano sim e ano não, por muitos anos, eu me engajei ativamente nas discussões do cenário político-eleitoral.

Para todas as pessoas que eu digo que vou casar esse ano, e que me conhecem faz algum tempo, a reação é de espanto. Porque, em geral, o ano que vamos casar é um ano em que todas as nossas forças são centradas no casamento, na festa, na lua de mel. Tudo gira em torno do enlace. E como é que eu, uma feminista que já atuou por tantos anos, decide casar em um ano em que, em geral, foquei minhas energias em discussões e apoios políticos-eleitorais para defender as ideias nas quais acredito?

Uma das coisas que aprendi com a feminista Audre Lorde é de que, de fato, a luta é incansável, principalmente para nós, mulheres negras, atravessadas por tantas camadas e intersecções das opressões. Se para uma feminista, o patriarcado não para; para uma mulher negra, o patriarcado e o racismo operam em uníssono. E, de fato, sobra pouco tempo.

Mas a mesma Audre Lorde, bem como outras feministas, apontaram que a gente só luta se estiver viva, se cuidar de si. A nossa luta não pode causar adoecimento, não pode ser um estresse para nós, não pode fazer com que a gente se desligue de tudo sobre nós, sobre o nosso íntimo, para se doar totalmente. Até para termos força e disposição, precisamos estar bem, com saúde física e mental ajustadas, ou, ao menos, construirmos espaços que nos ajudem nesses processos de cura. Audre Lorde falava que autocuidado radical é autopreservação de mulheres negras.

Com certeza, Lorde falava de um autocuidado radical, no sentido de cuidado com o corpo e a mente, mas que não se dobrava aos ditamos dos sistemas de dominação.

O que quero dizer é que, para mim, assim como para Audre Lorde, autocuidado não é skincare. Pode ser também, compreendendo que se cuidar pode ser um prazer para si mesma e não para atender às demandas e padrões de beleza do patriarcado. Mas uma autorrealização que traga conforte e, principalmente, a cura e recarga necessária diante do mundo.

O momento de riso com suas irmãs, o momento de sua leitura, o momento de sua meditação, o cuidado com o espírito em sua religiosidade e aprender a ter a percepção e sabedoria de quando recuar para tomar impulso.

Por favor, não ache que estou reduzindo o pensamento de Audre Lorde para dizer que não vou contribuir em uma luta que acredito porque vou casar. Não é sobre isso, exatamente. É sobre compreender que eu posso construir as duas frentes, ou até mesmo priorizar uma delas, sem necessariamente me acabar com elas.

Quando digo me acabar é sobre não me expor a uma dinâmica diária que esvaia minha energia. Mas é sobre equilibrar dois processos que são importantes para mim, sobre me preservar e, ainda sim, contribuir e construir ideias e projetos que acredito.

A partir disso que compreendi que, se é um desejo meu fazer uma cerimonia, uma festa, me casar, isso não pode me estressar - ainda que estresse muitas vezes. E que fazer isso não envolve abandonar de todo as lutas políticas que acredito serem necessárias e importantes. Mas equilibrar essas frentes, preservar o meu bem-estar para que eu seja inteira em ambas.

Ao escrever isso, tudo parece mais fácil do que realmente é. O ano está intenso. A crise econômica está aí e os boletos incessantes. Tudo conspira para que eu derrape e acabe me perdendo no caminho do exercício da minha autopreservação.

O fundamental é saber que, mesmo diante de certo caos, posso manter-me focada em permanecer viva e lúcida, disposta e atuante, confiante e feliz, notadamente feliz.