Topo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Caso Johnny Depp e Amber Heard vai a tribunal. Por que acreditar nela?

O ator Johnny Depp  - Reprodução/Instagram
O ator Johnny Depp Imagem: Reprodução/Instagram

Colaboração para Universa

11/04/2022 04h04

Nesta segunda (11), no tribunal do Condado de Fairfax na Virgínia, nos Estados Unidos, pode chegar ao fim a longa e conturbada briga judicial entre os atores Amber Heard e Johnny Depp que, desde 2016, divide opiniões e traz ao debate questões fundamentais de gênero em nossa sociedade.

Amber e Depp se casaram em 2015 e, quinze meses depois, a atriz deu entrada no processo de divórcio junto a uma ordem de restrição com base em fotos de hematomas em seu rosto, depois de agressões do marido.

O tabloide inglês The Sun lançou na capa a manchete o chamando de "Espancador de Esposa". Convencido de que ainda desfrutaria de impunidade, o ator processou o jornal por difamação.

johnny - PETER NICHOLLS - PETER NICHOLLS
Imagem: PETER NICHOLLS

Ela testemunhou sobre a veracidade da acusação provando em tribunal não um, mas doze episódios de agressão e três vezes em que temeu pela própria vida. As palavras do juiz Andrew Nicol, ao proferir sua sentença, foram: "Aceito que ela foi vítima de agressões múltiplas e sustentadas pelo Sr. Depp" e "Eles [episódios de agressão] devem ter sido aterrorizantes". Dois juízes no Tribunal de Recursos confirmaram a decisão do juiz.

Corta para uma cena do meu cotidiano. Certo dia, minha filha chegou da escola contando que havia aprendido sobre a Medusa. Qual não foi minha surpresa, pois me recordo de ter aprendido sobre a mulher cujo cabelo é um ninho de serpentes venenosas e que transforma em pedra aquele que a olhar nos olhos, muitos anos mais tarde. Minha filha, no entanto, já sabia o principal dessa história e me contou com um toque de revolta: a Medusa não é uma vilã como todo mundo pensa.

É muito cedo para que ela saiba os pormenores do mito, no qual Medusa foi condenada e punida por ter sido estuprada pelo deus Poseidon. Mas a essa altura minha filha já sabia que Medusa era vítima da narrativa que foi contada sobre ela.

O mito da Medusa nos informa papéis de gênero de maneira muito exemplar. O homem, um deus, que pode tomar à força aquilo que deseja. A mulher desejável — pois Medusa era a sacerdotisa mais bela e devotada do templo de Atena —, que é julgada e punida apenas por ter sofrido a ação violenta de um homem sobre seu corpo. Como se não bastasse a violência inicial, ainda é humilhada, se torna um monstro e é condenada a se rastejar pelo resto de sua existência. Ela é eternizada como vilã por toda a história até que ninguém se lembre de quem ela era antes, e se lembre muito menos do que fez Poseidon, o deus.

Dando um salto para o século 21, pergunto-me como é ser um "deus" moderno. Um super-astro da constelação de Hollywood, amado por várias gerações em diversos continentes por seus personagens carismáticos, um homem cujos defeitos são tomados como mera "excentricidade", mas também alguém com um histórico de violência que inclui pelo menos três prisões.

Alguém de conhecida e reiterada fama por abuso de drogas e por agressões, mas cujas ações são justificadas como sendo o comportamento de um clássico "rock star". Sim, estou falando de Johnny Depp, preso em 1989 por agressão a um segurança de hotel no Canadá, em 1994 por destruir o quarto de hotel onde estava com sua ex-namorada, a supermodelo Kate Moss, e em 1999 por ameaçar um paparazzo em Londres. E, apesar desses fatos, ele seguiu intocável, ascendendo em sua carreira.

A enxurrada de ódio sobre Amber

O mundo, então, soube que ele abusava física e psicologicamente de Amber Heard. E agora basta uma busca simples em qualquer rede social com o nome dela para se deparar com uma enxurrada de ódio e ameaças de morte a ela e à filha, ainda bebê. Para um estudo do Centro de Combate ao Ódio Digital, o CCDH (sigla em inglês), a atriz afirmou receber, entre outros assédios, mensagens sugerindo que ela se mate ou ameaçando sua filha.

Tudo porque ela ousou manchar a imagem ilibada do "deus", o todo-poderoso Johnny Depp, cujo largo histórico de comportamentos violentos é até então esquecível.

Mas, qualquer um que queira ter acesso às evidências do caso, basta acessar os documentos oficiais dos tribunais (judiciary.uk e Fairfax). Fiz isso, e a transcrição do depoimento de um dos padrinhos do ex-casal, o escritor iO Tillett Wright, me chamou atenção: "A primeira coisa que o Johnny me disse depois da cerimônia, enquanto caminhávamos para a recepção, foi: 'Agora eu posso socá-la no rosto e ninguém pode fazer nada quanto a isso'". O casamento o autorizava a violentá-la?

Mas os deuses têm seus companheiros no Olimpo. Em uma troca de mensagens exposta nos documentos do tribunal entre Depp e o ator Paul Bettany, que interpreta o "Visão" na Marvel, os dois conversavam sobre "afogar" Amber Heard e "f*der seu cadáver queimado depois para ter certeza de que ela está morta", nas palavras de Depp.

A campanha para Amber como "grande vilã"

Em 2018, Amber escreveu um editorial para o jornal The Washington Post pedindo proteção às instituições para as vítimas de abuso e violência doméstica. Falava de sua própria experiência, mas sem citar em nenhum momento o nome de Johnny Depp. E mesmo sem ter o nome citado, Depp a processou por difamação e apelou para o tribunal da internet.

Ele disse que ela estava "implorando por uma humilhação global". Surgiu uma campanha de difamação, com a divulgação de documentos falsos, trechos de gravações de áudio editados e fake News. O objetivo era inverter os papéis, desacreditar Heard. Torná-la o monstro com cabelos de serpente, a grande vilã. A campanha foi tão intensa que o juiz expulsou do caso o principal advogado de Depp, Adam Waldman, por vazar e manipular informações para difamá-la.

O analista de dados Christopher Bouzy, que expôs a realização da mesma estratégia contra a atriz Meghan Markle, revelou ao documentário "Johnny vs Amber", da Discovery +, a existência do mesmo padrão contra Amber Heard.

"No início de 2020, fomos contatados para verificar a atividade no Twitter e conseguimos determinar cerca de 6 mil contas falsas ou inautênticas que visavam a Sra. Heard", disse. "É definitivamente uma campanha de difamação, é definitivamente uma campanha de influência coordenada."

Negar, atacar, inverter vítima e ofensor

O caso dos dois atores é um típico exemplo da expressão "Deny, Attack and Reverse Victim and Offender", em português: "Negar, Atacar e Inverter Vítima e Ofensor/Agressor"). Cunhada pela psicóloga norte-americana Jennifer Freyd, a expressão descreve uma estratégia comum entre abusadores: primeiro negam que o abuso ocorreu, depois atacam a vítima manipulando a narrativa para que as pessoas pensem que eles, os agressores, são as verdadeiras vítimas.

A estratégia só funciona porque silenciar e desacreditar a palavra de uma mulher, de uma vítima de abuso, é uma prática comum em nossa sociedade.

É preciso uma lupa para separar fatos de fakes entre as notícias que saem sobre o caso. Por exemplo, Amber Heard nunca foi acusada de agressão pela sua ex-namorada. Nunca roubou a história de estupro de uma ex-funcionária e, infelizmente, aquilo foi real e testemunhado em tribunal. Ela nunca cortou o dedo de Depp, ele mesmo se cortou e a culpou por isso, como mostram mensagens enviadas ao seu médico, Dr. Kipper, nos documentos do tribunal.

Ela nunca agrediu sua ex-namorada, a fotógrafa Tasya van Ree que, inclusive, irá testemunhar por ela na Virgínia. A propósito, as ex-companheiras de Depp, Wynona Ryder e Vanessa Paradis, curiosamente não irão testemunhar em defesa dele, mas sua ex-namorada, Ellen Barkin está na lista de testemunhas de Heard, pois alega também que Depp era abusivo e violento com ela.

johnny depp - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Johnny Depp e a atriz Amber Heard
Imagem: Reprodução/Instagram

Acontece que Amber Heard não é a vítima perfeita. Ela é a vítima que reagiu. As pessoas tendem a desacreditar o abuso quando a mulher reage em autodefesa. A divulgação de um áudio de terapia de casal que foi editado e vazado por Waldman, em que a atriz afirma ter dado um soco em Depp, fez com que, imediatamente, ela passasse a ser considerada a agressora e ele a vítima na fogueira da internet.

Surgiram as frases do tipo: 'Mas ela também...'. Quando o fato é que ela ousou não apanhar calada. A sociedade não perdoa a mulher que não apanha calada. Assim que uma mulher denuncia abuso, as pessoas começam a perguntar o que há de errado com a vítima, quando deveriam perguntar o que há de errado com o agressor.

Bombardeada diariamente com uma narrativa muito bem conduzida pelo abusador, a internet transformou Amber Heard em Medusa.

A história a fazia parecer a vilã, aquela que arquitetou tudo minuciosamente apenas para destruir a carreira da grande estrela. Até quando a carreira de um homem valerá mais do que a vida de uma mulher?

Mesmo depois de serem provados os 12 episódios de agressão, confirmados por três juízes (e sabemos o quanto a justiça privilegia homens brancos e ricos; para um homem poderoso como Depp perder, a situação só pode ser muito grave), mesmo depois de fotos, de depoimentos de maquiadores e cabeleireiros sobre esconderem as marcas de lábios cortados, tufos de cabelo arrancados e olhos roxos, de funcionários que foram testemunhas, mesmo depois das corajosas alegações de estupro, mesmo depois de vídeos onde Depp é psicologicamente abusivo com ela e de uma tonelada de evidências dispostas no site do tribunal para quem quiser ver, a narrativa que se impregnou nas pessoas é a de Heard é a abusadora apenas porque revidou.

No fundo, o que Johnny Depp parece querer com esses processos de difamação cujas evidências pesam contra ele é apenas o controle da narrativa. Não importa perder mais uma vez em um tribunal, o que importa é salvar sua carreira manipulando a opinião pública contra Amber Heard.

Então, finalmente volto ao mito da Medusa. O deus a violenta e ela é quem é punida por Atena, sob o silêncio das outras sacerdotisas e das outras deusas. Poseidon a violentou, mas quem a castigou e colocou sua cabeça a prêmio foi Atena.

Precisamos parar de proteger homens que agridem, estupram e abusam de mulheres só porque nos parecem "deuses", só porque as histórias fazem parecer que elas são as vilãs. Se deixarmos que uma mulher seja vilanizada por denunciar o seu abusador, então corremos o risco de que todas nós mulheres sejamos Medusas.

*Larissa Ibúmi Moreira é escritora, historiadora formada pela USP, mestranda em História e graduanda em Comunicação Social pela UFSJ. Autora do livro "Vozes Transcendentes: os novos gêneros na música brasileira" e trabalha como pesquisadora para Audiovisual.