Topo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Finados: lidar com a morte e com o luto é uma tarefa feminina?

PeopleImages/Getty Images/iStockphoto
Imagem: PeopleImages/Getty Images/iStockphoto
Juliana Dantas

Colaboração para Universa

02/11/2022 04h00

Pensar sobre a nossa própria morte — e a morte de quem a gente ama — é difícil. E é ainda mais duro quando nos deparamos com a finitude concreta: o envelhecimento, um adoecimento grave, a morte em si ou um luto com o qual devemos lidar. Mas são tarefas inevitáveis - que estão sendo protagonizadas por mulheres.

A pandemia nos forçou a olhar para esse assunto, do qual a gente costuma querer fugir. Os milhares de mortos e os milhões de enlutados vieram como um tsunami. Era impossível estar preparado. Sobretudo quando vivemos em uma sociedade que se esquiva a todo custo da ideia da própria finitude.

Embora a morte seja batizada como "a única certeza que a gente tem na vida", não é assim que costumamos encarar o tema na prática. Envelhecer é um defeito a ser combatido, a morte é uma falha, o luto deve ser abafado, a imortalidade é um devaneio desejado por muitos.

Os números não mentem

A gente acabou de sair do Outubro Rosa e, mais uma vez, um dado cruel foi pouco comentado: sete em cada dez mulheres com câncer de mama são abandonadas pelo seu parceiro por causa do diagnóstico. A informação é da Sociedade Brasileira de Mastologia.

Se a gente for buscar exemplos nos Estados Unidos, apesar de 80% dos americanos desejarem morrer em casa apenas 30% conseguem passar os últimos momentos de vida no conforto do lar - e isso se deve a uma série de fatores, como região, raça/etnia e situação econômica.

No recorte de gênero, observamos que a maioria dos que morrem em casa é de homens, pois há mulheres que topam encarar o cuidado de perto. Na contramão, mesmo as mulheres que têm o desejo de partir deitadas na própria cama, em um ambiente acolhedor, acabam morrendo no hospital - onde a maior parte do cuidado é delegada para as equipes de saúde.

As profissões que envolvem cuidado também tendem a ter prevalência feminina: dos 433.456 psicólogos registrados no Conselho Federal de Psicologia, 84,82% se identificam como mulheres. Em números absolutos, as mulheres são a imensa maioria em todos os estados do país e no Distrito Federal.

Quando eu e o jornalista Renan Sukevicius decidimos levar pra frente um podcast chamado Finitude, não imaginávamos ter uma conversa com este ou aquele gênero. No Finitude, falamos sobre envelhecimento, saúde mental, adoecimento, cuidados paliativos, morte e luto. Já são sete temporadas e mais de 90 episódios no ar, e há uma constância: 86% dos ouvintes são mulheres.

O inFINITO -- um dos maiores movimentos civis do mundo que promovem conversas sobre o viver e o morrer -- tem um recorte temático muito parecido com o do Finitude. E, dos mais de 53 mil seguidores no Instagram, 89% são que? Isso mesmo, mulheres.

O gênero da finitude

A morte é uma experiência tão natural quanto humana. Mas o que explica a prevalência expressiva de mulheres nas funções que envolvem a nossa essência finita?

Podemos partir de duas hipóteses: às mulheres é socialmente delegada a função do cuidar e, além disso, são elas as que cultivam mais condições de refletir e expressar emoções.

A psicóloga Valéria Tinoco, especialista em perdas e luto, não descarta alguns fatores biológicos e instintivos como, por exemplo, os cuidados empregados por quem gesta e cria uma criança.

Por outro lado, há uma construção cultural fortíssima que impacta a todos nós: "A começar dentro das próprias famílias, desde que uma mulher nasce. A menina aprende antes a cuidar de si mesma. Aprende o cuidado com o bem-estar, com a alimentação, com a casa, com o outro."

Valéria Tinoco, que também é sócia-fundadora do Quatro Estações Instituto de Psicologia, afirma que não necessariamente as mulheres têm mais facilidade para lidar com a morte, mas costumam ter mais facilidade para falar a respeito.

"As mulheres têm acesso mais fácil aos sentimentos. Primeiro, porque esse lugar sobre falar o que sente já é mais socialmente determinado.", explica. "O homem, por sua vez, é mais do fazer, da ação, também socialmente. Fazer, resolver, agir.", completa.

Em geral, as expressões de luto seguem essa mesma toada. A demonstração de tristeza, o choro e o lamento são mais visíveis nas mulheres. Não é correto afirmar, contudo, que os homens sintam menos o luto.

É mais comum que os homens assumam os papéis de resoluções práticas e burocráticas, se voltando para a ação - e são menos abertos à expressão verbal. O envelhecimento, a dor, o sofrimento e a morte são temas que se relacionam com o estado de vulnerabilidade: na lógica da construção machista, é um estado que deve ser evitado; é como se a fragilidade fosse um defeito.

"O homem tem que ser forte, tem que fazer, tem que estar sempre preparado pra lutar, ele não pode ser vulnerável.", aponta a psicóloga. "Aquele que luta não pode se ver de maneira fragilizada, senão já começa perdendo a luta. E como a mulher tem menos do que o homem esse papel para defender, eu acho que é menos incômodo falar das situações de fragilidade", finaliza.

Educação para a morte

Assim como ler, escrever, andar de bicicleta e administrar as contas de casa, lidar com a nossa finitude também é algo a ser aprendido - independentemente do gênero. Ao contrário do que trazem algumas crenças populares, falar sobre a morte não é contagiante e nem é mau agouro. Pensar sobre a morte, conversar sobre a morte e refletir sobre a morte só torna tudo menos difícil — e isso é bem-vindo, não?

E mais: quando aceitamos entrar em contato com temas delicados, também estamos mais aptos a acolher um amigo ou parente que esteja enfrentando uma situação de adoecimento, uma iminência de morte ou mesmo atravessando um luto. Sem frases prontas, sem minimizar dores, sem querer fugir: estando presente, de olhos e coração abertos.

Eu cheguei até aqui a partir de lutos pessoais: a minha avó materna e o meu pai morreram num intervalo de menos de três meses, em 2018. E um dos muitos jeitos que temos de lidar melhor com as nossas perdas é sempre honrando o legado dos nossos amores, reproduzindo receitas com aromas e sabores que nos lembrem deles e sempre os mantendo vivos nas conversas, nas histórias de família, nos objetos ou nos hábitos.

A começar por sempre repetir os nomes dos que já partiram: Olga Kunc, Audálio Dantas, sempre presentes. <3

Você topa continuar essa conversa?

Seguem algumas recomendações para você ler, curtir, assistir e acompanhar:

  • Finitude Podcast - nos principais tocadores de podcasts (Spotify, Deezer, Apple Podcasts, Orelo, Amazon Music, entre outros), no Youtube, no Instagram e no Twitter
  • Movimento inFINITO - @infinito.etc no Instagram
  • Luciana Dadalto - professora, bioeticista, pesquisadora, advogada, especialista em testamento vital - @lucianadadalto
  • Vamos falar sobre o luto?
  • "Mortais", livro de Atul Gawande
  • "Educação para a morte", livro de Maria Júlia Kovács
  • "O luto no século 21: uma compreensão abrangente do fenômeno", livro de Maria Helena Pereira Franco
  • "O dia em que o passarinho não cantou", livro de Valéria Tinoco e Luciana Mazorra
  • "Luto por perdas não legitimadas na atualidade", livro de Gabriela Casellato
  • "A vida perto da morte", livro de Rachel Clarke
  • "Quando a morte chega em casa", livro organizado por Teresa Vera de Sousa Gouvêa e Karina Okajima Fukumitsu
  • "Nem covarde, nem herói: amor e recomeço diante de uma perda por suicídio", livro de Luciana Rocha
  • "Extubado", livro de Denis Levati
  • "Extremis", disponível na Netflix
  • "A partida final", disponível na Netflix

* Juliana Dantas é jornalista e apresentadora do Finitude Podcast