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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ainda estamos presos ao ano em que Madalena começou a ser escravizada

Madalena Santiago, que foi vítima de trabalho escravo - Reprodução/TV Bahia
Madalena Santiago, que foi vítima de trabalho escravo Imagem: Reprodução/TV Bahia

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Colaboração para Universa

06/05/2022 04h00

Feche os olhos. Estamos em 1967, e o golpe militar no Brasil tem apenas três anos. O marechal Arthur da Costa e Silva toma posse como presidente; Che Guevara foi executado na Bolívia; a República dos Estados Unidos do Brasil passa a se chamar República Federativa do Brasil e uma menina de oito anos, Madalena Santiago da Silva, entrava na casa de Sônia Seixas Leal para trabalhar sem ganhar salário.

Agora abra os olhos. Estamos na terceira década do século seguinte à entrada de Madalena na vida da família Leal, mais exatamente no ano de 2022, e ela, agora uma senhora de 62 anos, finalmente saiu dos domínios de seus senhores. Sim, senhores escravocratas bem ao estilo dos séculos anteriores à sua chegada na vida daquelas pessoas.

Não interessam as circunstâncias, não interessam as intenções, não interessam os "bons sentimentos", não interessa nada. Madalena é mais uma escravizada no período pós-abolição, mais uma prova de que o Brasil é um país que muda para continuar exatamente da mesma maneira brutal e exploratória que o originou.

Bem ao gosto das histórias de terror que pioram a cada nova cena, uma carta de 2018 assinada pelos ex-patrões acusam a filha de ter feito empréstimos no nome de Madalena. Segundo o Ministério do Trabalho e Previdência, além dos empréstimos, a mulher ainda teria ficado com R$ 20 mil da aposentadoria da doméstica. Na carta, o antigo patrão, Carlos, se refere a Madalena como "mãe preta" e "escrava". Relatos de maus tratos, injúrias raciais e assédio moral. Por fim, a ex-patroa, Sônia Leal, disse que não lhe pagava salário porque a considerava "da família, como uma irmã".

No entanto, a apoteose do caso todo não se deu neste ambiente horripilante da Casa Grande contemporânea, mas na ágora, na praça pública dos novos tempos chamada mídia eletrônica e internet. Entrevistada pela TV Bahia, Madalena chorou e não quis tocar as mãos da repórter branca. Disse temer tocá-la e não gostar do contraste de cores. Essa cena foi uma estocada no coração de cada pessoa negra deste país, minimamente consciente e desperta para as sequelas da escravidão e o racismo.

Aqui paro para falar na primeira pessoa, pois o choque da cena protagonizada pela repórter e por Madalena me fez, em um gesto automático de indignação, compartilhar o vídeo nas minhas redes sociais. Após uma reflexão também compartilhada por seguidoras e fãs do que produzo na literatura, apaguei.

Não tem o menor cabimento que uma mulher recém-liberta de cinco décadas e meia de maus tratos e humilhações tenha sido exposta daquela forma. Ser forçada a tocar nas mãos semelhantes àquelas que tanto a maltrataram foi mais um ato de tortura, ainda que inconscientemente.

A intenção, sabemos, foi de tranquilizá-la e fazê-la entender que não existem diferenças, mas feridas muito profundas não se curam em dez segundos de imagens piedosas frente a um país inteiro. Não interessam as intenções. Não interessa nada.

Cabe uma reflexão sobre a humanização da mídia e sobre inclusão nos veículos, pois quis ardentemente que a pessoa a entrevistar Madalena fosse uma mulher negra e não apenas isso, mas uma mulher negra mais velha. Teríamos assim mãos se entrelaçando que se assemelham, reconhecem e se acolhem. Teríamos um coração menos angustiado e aflito, pois cada segundo de economia no sofrimento de Madalena, a esta altura da vida, conta.

Há alguns anos, minha família enfrentou problemas com minha tia-avó na igreja em que ela frequentava. Ela ia à missa todos os dias e se levantava do banco para ceder o lugar toda vez que uma pessoa branca se aproximava. Seus comprometimentos psiquiátricos faziam com que ela estivesse congelada em um tempo em que isso era normal e esperado. Por conta deste episódio, vi meu pai socar a parede perguntando-se com muita raiva: "O que fizeram conosco?"

Quando Madalena contava oito anos, vivíamos uma ditadura, com uma elite arraigada a seus latifúndios, um Nordeste ainda repleto de "coronéis, sinhozinhos e sinhás". Era o final dos anos 1960 da falta de liberdade para opinar, para pensar um país livre de amarras centenárias. Quando a menina negra baiana se equilibrava na ponta dos pés para alcançar a pia e lavar os pratos, o obscurantismo reinava e se aprofundava.

A pergunta do meu pai deve ecoar em cada mente que se escandalizou com o caso de Madalena Santiago da Silva. O que fizeram conosco que anestesiou nossa reação e nossa alma a ponto de não enxergar as violências literais e simbólicas?

Mas, principalmente, devemos responder a pergunta sobre o que fizeram conosco para que sigamos presos ao ano em que Madalena entrou no cárcere.