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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Oscar: É 2022, e alguém com deficiência ser premiado ainda é extraordinário

Elenco e equipe de "No Ritmo do Coração" recebe Oscar de 2022 de melhor filme - Getty Images
Elenco e equipe de 'No Ritmo do Coração' recebe Oscar de 2022 de melhor filme Imagem: Getty Images
Julia Spadaccini

Colaboração para Universa

29/03/2022 04h00

Já na abertura do filme "No Ritmo do Coração", vemos uma garota cantando belamente enquanto trabalha num barco de pesca com dois homens. Estranhamente, os dois trabalhadores que a estão acompanhando não se espantam ou se encantam com sua voz. Em seguida, entendemos quem eles são e o porquê da indiferença: seu pai e seu irmão, ambos surdos.

A curta aflição do espectador é aliviada. Espertamente o roteiro já nos coloca de frente com uma simbólica falta de escuta às avessas. A garota, cunhada pela sociedade como "normal", não está sendo ouvida. Seu dom musical passeia invisível por aí.

Porém, essa é uma cena constante na vida das PCDs (pessoas com deficiência). Só aqui no Brasil são 45 milhões de pessoas não ouvidas, não olhadas, não compreendidas, não incluídas. Dessa turma toda, somente 300 mil têm um lugarzinho ao sol, ou seja, estão inseridos no mercado de trabalho.

A noite de anteontem foi emocionante, com o filme ganhando três Oscars —sendo que um deles foi na categoria melhor ator coadjuvante para Troy Kotsur. Mas quando leio a palavra "histórica" nas reportagens, confesso que minha alegria murcha. Estamos em 2022, e uma pessoa com deficiência auditiva ser premiado ainda é considerado algo extraordinário.

Anteontem, todos os artistas na plateia balançaram as mãos para aplaudir, na língua de sinais, os vencedores do filme. Foi catártico! Sim, claro.

Eu chorei, você chorou, todos se emocionaram, mas vale ressaltar que eu estava vendo a apresentação do prêmio, em casa, sem legendas automáticas. E também não vi um tradutor de sinais no canto da tela. A surda, que vos escreve, estava aqui tentando ler lábios em inglês para adivinhar o que todos diziam.

Impossível. Desisti. Fiquei curtindo meu cinema mudo, como sempre.

A família Rossi reunida em cena do filme "No Ritmo do Coração" - Divulgação/Diamond Films - Divulgação/Diamond Films
A família Rossi reunida em cena do filme "No Ritmo do Coração"
Imagem: Divulgação/Diamond Films

Vocês perceberam que, quando Troy Kotsur, ator do filme, subiu ao palco para receber o prêmio, ali estava uma mulher traduzindo Libras para a plateia? Mas, no decorrer da premiação, você não vê legendas eletrônicas no palco nem alguém traduzindo para a linguagem de sinais os discursos?

Provavelmente, também não devem ter fones com audiodescrição para pessoas com deficiência visual. Mas será que já houve na história? Para que tudo isso se praticamente não existem PCDs na plateia, não é mesmo?

É tudo muito lindo, mas a realidade se impõe no dia a dia: é a falta de inclusão no mercado de trabalho, o capacitismo diário, a falta de acessibilidade constante e uma representatividade que, quando ocorre, é histórica.

Há 35 anos, me lembro de ver Marlee Matlin, atriz surda que também está em "No Ritmo do Coração", ganhar o Oscar por "Filhos do Silêncio". A imagem daquela mulher nunca me saiu da mente. Eu ainda era criança, ainda não tinha perdido a audição, mas fiquei tocada com sua forte presença.

Hoje penso que, para a atriz, deve ter sido muito solitária a noite da premiação. Ninguém ali tinha uma condição parecida com a dela, e os aplausos eram barulhos de palmas que ela nem sequer pode ouvir.

Viola Davis, num de seus discursos, disse que não tem como ganhar prêmios por papéis que não existem. É isso. No caso das PCDs os papéis não existem e, às vezes, nem um lugar na plateia.

Eu comecei querendo falar maravilhas da noite linda e histórica. E cá estou terminando com um pedido: parem de nos tornar históricos, queremos ser apenas histórias.

A propósito, como é que uma pessoa com deficiência visual vai ter acesso a esse texto?

*Julia Spadaccini nasceu no Rio de Janeiro, tem 43 anos, é formada em Artes Cênicas pela UNI-RIO, em Psicologia pela USU e Pós-graduada em Arteterapia pela Cândido Mendes. A diretora e roteirista começou a perder a audição aos 17 anos. Escreveu o monólogo "Surda", que será dirigido por Andréa Beltrão no teatro.