Uma nação se faz na cama?

Como projeto que analisou o DNA dos brasileiros comprovou nossa origem violenta e miscigenada

Mirthyani Bezerra Colaboração para Tilt

Basta olhar ao redor para se dar conta. Somos um povo de cabelo escuro, mais cacheado e crespo, porém também liso e loiro. Somos pretos, mas também amarelos. Temos olhos claros, mas também puxados. Carregamos sobrenomes estranhos, com fonemas diferentes aos do nosso português brasileiro.

O Brasil é sim uma mistura de povos, aquele velho clichê —cientistas dizem que somos "provavelmente" o país mais miscigenado do mundo. Mas, o paraíso racial não existe. Somos, na verdade, o país cujo "soluçar de dor no canto do Brasil" ninguém ouviu, como cantava Clara Nunes.

Somos filhos da colonização. As marcas desse passado de violência e exploração estão em diversas faces da nossa sociedade e, o que se descobriu mais recentemente, essas marcas estão gravadas até no nosso genoma. A formação do povo brasileiro foi tudo menos equilibrada, revelou os primeiros resultados do projeto "DNA do Brasil".

Europeus, africanos e indígenas não se casaram e se reproduziram de forma harmoniosa. Muito pelo contrário: os dados genômicos das amostras de 1.247 brasileiros de diferentes regiões do país apontaram para uma herança genética materna majoritariamente africana e indígena, enquanto a paterna é 75% europeia.

Os homens africanos deixaram apenas 14,5% do seu DNA, enquanto os indígenas transmitiram apenas 0,5%.

Assustador? Não para Tábita Hünemeier, professora do departamento de Genética de Biologia Evolutiva da USP (Universidade de São Paulo) e uma das autoras do estudo. "Eu me surpreendi de ver como as pessoas ficaram chocadas, porque são dados que gente meio que sabia. Claro que agora temos um maior detalhamento, mas sabíamos que as relações eram assimétricas", disse.

Segundo ela, a pesquisa evidenciou o óbvio, de que havia uma diversidade nativa americana quando europeus chegaram. Depois, foram trazidos os escravos negros de todos os lados da África. E, por fim, vieram os europeus de vários países. Mas não para por aí.

Especialistas entrevistados por Tilt foram quase unânimes em dizer que os dados do DNA confirmam algo que há tempos as ciências sociais já sabiam: a máquina colonial violentou, inclusive sexualmente, mulheres africanas e indígenas e exterminou homens nativos, enquanto homens africanos morriam jovens ao serem submetidos a torturas e trabalho escravo.

A sociedade colonial não pode ser vista como algo "hermeticamente fechado", ressalta o historiador Hilário Ferreira, pesquisador da história e cultura dos negros no Ceará. Relações consensuais entre brancos europeus, africanas escravizadas e mulheres indígenas eram comuns e, dentro de uma estrutura colonial dominada pelo homem branco, podiam até resultar em alforria e mobilidade social.

Ainda assim, trata-se de um passado atípico.

O Brasil colônia

Túnel do tempo celular

Toda essa informação hereditária está guardada no nosso DNA. É ele quem explica a cor dos nossos olhos, por que toda sua família tem propensão a hipertensão ou de onde viemos.

No projeto "DNA do Brasil", as pesquisadoras mergulharam nas informações genéticas guardadas nas nossas mitocôndrias e nos cromossomos Y para saber quais as variantes de outras populações que aparecem no povo brasileiro.

"O meu DNA mitocondrial é o mesmo da minha ancestral feminina mais antiga. O cromossomo Y também veio do homem mais distante da linhagem dele", explica Hünemeier. "Quando a gente olha o [DNA] mitocondrial e o [cromossomo] Y, estamos olhando para trás, para a história das primeiras linhagens que chegaram no Brasil, de como elas se misturaram. Estamos olhando para a história dos primeiros dois séculos da colonização."

Lembra das aulas de genética da escola?

  • DNA mitocondrial (mtDNA):

As mitocôndrias ficam do lado de fora do núcleo da célula e justamente por isso, não sofre eventos de recombinação —ao contrário do espermatozoide, que perde suas mitocôndrias ao entrar no óvulo (veja abaixo). Assim, será sempre o mtDNA da mulher que será transmitido às herdeiras mulheres.

  • Cromossomo Y:

O espermatozoide do pai (XY) define se um embrião será do sexo masculino ou feminino, porque pode passar tanto o cromossomo sexual X quanto o Y no processo de fecundação do óvulo da mãe (XX). Se o espermatozoide passar o X, na combinação com o X do óvulo, vira XX (feminino). Se passar o Y, vira XY (masculino). Isso quer dizer que o cromossomo Y é sempre o mesmo do pai para os filhos e os netos.

Violência sexual como forma de dominação

Em outras palavras, a pesquisa mostrou com detalhes que os encontros sexuais nos primeiros dois séculos de colonização foram assimétricos. Apesar de a historiografia mostrar que houve um boom na quantidade de europeus vivendo no Brasil a partir do século 17, quase equiparando-se a de indígenas e africanos, a nossa genômica mostra que isso não se refletiu nas relações.

"O que a gente está dizendo é que antigamente tínhamos muitos homens europeus tendo filhos com mulheres indígenas e africanas", diz.

Laura Moutinho, autora de "Razão, Cor e Desejo: uma análise dos relacionamentos afetivo-sexuais inter-raciais no Brasil e África do Sul" e professora do departamento de Antropologia da USP, diz que os dados batem com o levantamento histórico que aponta que a nação brasileira foi gerada a partir de estupros.

"Temos material científico suficiente, de muitas áreas, para dizer que nós somos fruto de uma violência, que o Brasil se constitui de um modo violento e a violência sexual é parte disso. Ela age de um modo assimétrico em relação ao gênero", afirma.

Hilário Ferreira também afirma que quem mergulhar na história da escravidão no Brasil vai observar que o processo de miscigenação não foi "igual, suave e harmonioso" e a explicação para essa discrepância passa necessariamente pela violência sexual de gênero.

Durante as pesquisas que originaram o livro "Catirina, minha nega, Teu sinhô ta te querendo vendê", ele encontrou muita documentação de casos de senhores que forçavam mulheres escravizadas a ter relações sexuais.

"Há casos no Brasil inteiro, não só de senhores, mas filhos de senhores que estupravam, de capatazes e outros homens [presentes naquela estrutura]. (...) A nossa miscigenação se deu basicamente por meio de estupros, com certeza", diz.

Laura Moutinho acrescentou inclusive que esse tipo de violência era estimulada pela máquina colonial, porque havia um interesse pecuniário na miscigenação, afinal filho de escravo era escravo, não importando se ele havia nascido branco ou preto.

É possível dizer que uma nação se faz na cama, mas quem estava nessa cama? Homens europeus violentamente se relacionando com as mulheres nativas locais e as mulheres africanas escravizadas

Laura Moutinho, professora do departamento de Antropologia da USP

Outras perspectivas: estupros constantes são mito

Mas nem todos os historiadores concordam com esta tese, vale dizer. Mary Del Priore, que lançou recentemente o livro "Sobreviventes e guerreiras" com histórias de mulheres brasileiras ao longo de 500 anos, diz que a interpretação é "ultrapassada e inspirada nos sociólogos da década de 1960 e 1970".

Segundo ela, as porcentagens reveladas pelo projeto DNA do Brasil refletem relações consentidas entre mulheres negras e indígenas com homens brancos. Ela conta que nos primeiros contatos dos portugueses com os indígenas, por exemplo, era comum que o chefe do grupo oferecesse uma mulher a todo o estranho que fosse viver entre eles.

No caso das mulheres escravizadas, as relações sexuais com seus senhores —e os filhos naturais ou adulterinos que delas nasciam— tanto podiam ser "um infortúnio quanto uma estratégia" de conquista da liberdade, defende.

A historiadora considera que "o mito de constantes estupros" não explica que tantas concubinas tenham sido alforriadas quando da morte de seu senhor. "Alforriadas e favorecidas", diz. "Donas de suas posses, livres de cor e libertas administraram negócios e governaram escravos, tornando-se verdadeiras pontes no processo de mobilidade social de seus descendentes."

Segundo ela, vários estudos em testamentos da época comprovam que "homens solteiros e casados, livres e libertos beneficiaram escravas, libertas e livres de cor, pelo reconhecimento da paternidade de seus filhos ou como resultado de relações de afeto, dependência, fidelidade e gratidão."

Hilário Ferreira considera que, embora existem sim muitos relatos de senhores que se apaixonaram por suas escravizadas, isso era exceção, não regra. A sociedade colonial era cheia de contradições e complexa, mas claramente violenta e assimétrica.

"Eu tenho um documento sobre uma senhora que, só porque o senhor elogiou os olhos de uma africana, à noite quando ele foi comer uma sopa, os olhos da africana estavam no prato da sopa. Há casos também do inverso, de mulheres que se apaixonaram por seus escravizados a ponto de matar o marido. São casos atípicos, mas que existiam", conta.

Cadê o legado paterno indígena e africano?

A porcentagem tão pequena do homem indígena no nosso genoma (0,5%) foi o que chamou particularmente a atenção da antropóloga da USP. "É um o extermínio mesmo, você vê que é quase inexistente. É algo impressionante", diz.

Segundo ela, os europeus chegaram usando estratégias típicas de guerra para subjugar as populações originárias, ou seja, "exterminando homens indígenas e confiscando as suas mulheres". Foi isso, na opinião dele, que impediu que homens indígenas passassem seu legado genético para futuras gerações.

Já o historiador acrescenta que o sistema escravista colocou os africanos, vistos como "a força e a mão de obra preferencial" no centro do modelo de produção colonial e, com isso, mais próximos da vida social.

Reconhecer o passsado para mudar o presente

Os primeiros resultados do projeto DNA do Brasil, que até 2024 pretende sequenciar o genoma de 40 mil brasileiros, demonstram a importância do diálogo interdisciplinar entre as ciências, afirmam os especialistas ouvidos por Tilt.

"Tudo muda se a gente se reconhece como a nação violenta, que, de fato, somos. Então essa é mais uma instância científica mostrando a violência já afirmada e discutida por vários outros campos da ciência no Brasil", diz Moutinho.

Ainda segundo ela, saber das marcas deixadas pelo nosso passado violento ajuda a entender o fato de ainda existir tanta violência contra negros e indígenas no nosso país.

"Se não olharmos verdadeiramente para essa história, principalmente a partir das relações raciais, vamos continuar silenciando [essas populações]", acrescenta Ferreira.

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