O golpe do porco apaixonado

Criminosos seduzem online para pedir investimentos em moeda virtual -- e depois, sumir do mapa

Gabriel Daros De Tilt, São Paulo

Victor Mesquita, de 29 anos, conheceu Adele Ruien, 29, através de uma mensagem direta no Twitter. "Você acha que criptomoedas podem resolver o problema da inflação?", perguntou ela.

Ele, investidor nas horas vagas, gostou da pergunta, e explicou que preferia investimentos mais seguros. Adele gostou da resposta. E também da educação e simpatia dele, o que a fez pedir seu número de telefone.

Para ela, os dois tinham muito em comum: ele havia deixado sua cidade natal, Salvador (BA), para estudar em Santos (SP); ela abandonou a Coreia do Sul para tentar a vida em Los Angeles. Ele era funcionário de banco. Ela, instrutora de golfe. Ambos moravam sozinhos. Ambos pensavam muito no futuro.

O futuro deles, se Victor havia entendido direito, poderia muito bem ser lado a lado. Adele falava de uma grande vontade de visitar o Brasil, conhecer a cultura e assistir a uma partida de futebol.

Seria uma linda história de amor. Mas Adele não estava interessada no coração de Victor. Ela mirava nos seus bolsos — quando ele estivesse totalmente apaixonado, ela transformaria todos os investimentos dele em criptomoedas e, depois, levaria tudo embora.

Adele (nome obviamente falso) aplicava o Sha Zhu Pan ("abate de porco", em chinês): uma nova versão dos golpes de romance por meio de redes sociais, que faz vítimas no mundo inteiro. E que, agora, está chegando ao Brasil.

Golpe velho, moeda nova

Todos os dias, Adele enviava a Victor imagens de lagostas em restaurantes finos. O Instagram dela estava repleto de stories em clubes caros. Nas conversas de WhatsApp, bolsas e mais bolsas da Gucci, que ela pedia ajuda para escolher qual comprar.

O modus operandi era o mesmo de outros golpistas do Sha Zhu Pan: as imagens servem para criar intimidade com a vítima e, ao mesmo tempo, ostentar um estilo de vida arrebatador.

A jogadora de golfe alegava que tudo isso era possível graças às criptomoedas (dinheiro digital descentralizado, que pode ser transferido online pelo mundo todo), que ela investia em uma suposta bolsa de valores. Os rendimentos assustavam: Adele chegava a tirar até US$ 10 mil em um único dia.

"No começo eu achei estranho, mas fazendo algumas contas, dependendo do tempo de investimento, até fazia sentido", afirmou Victor a Tilt.

A impressão era de que Victor havia ganhado na loteria em dobro: num acaso do destino, sua vida amorosa e financeira estavam prestes a mudar radicalmente.

"É tudo muito sedutor porque todo dia você vê notícias de alguém que ficou rico da noite para o dia com criptoativos", explica Felipe Moraes, advogado criminal e autor do livro "Bitcoins e Lavagem de Dinheiro".

A missão do criminoso é convencer a vítima de que ela também pode ganhar muito dinheiro. Ao longo de semanas e até meses de relacionamento virtual, ele lentamente manipula sua confiança para estimulá-la a também investir — numa plataforma falsa, de onde ele poderá sacar todo o dinheiro.

É daí que vem o nome do golpe: primeiro, você precisa engordar o porco. Depois, arrancar toda a sua carne.

As 4 fases de conversão da vítima

Segundo a Global Anti-Scam Org, ONG que avalia os problemas do golpe

Empacotamento

A proposta vem de uma pessoa que se apresenta como rica, bem sucedida e emocionalmente interessada na vítima

Engorda

O golpista apresenta sua ''fórmula do sucesso'' e, num processo que pode levar até meses, convence o usuário a fazer o mesmo: comprar criptomoedas e investir numa plataforma de especulação

Abate

A plataforma apresenta resultados e incentiva o usuário a gastar ainda mais, chegando a ponto de tirar toda sua grana e tudo o que ela tem

Carneamento

Os golpistas levam todo o dinheiro e desaparecem da vida da vítima, que descobre que a plataforma de investimentos é falsa

US$ 490 milhões fraudados

Felipe Moraes explica que a comunidade internacional de cibercriminosos já adotou as criptomoedas antes mesmo de os países decidirem se permitem ou não seu uso.

"Os criptoativos são muito menos rastreáveis do que transações feitas dentro do sistema bancário, e não requerem muitas informações pessoais. Às vezes, não precisam de nenhuma. E podem ser enviados muito rápido pela internet para qualquer canto do mundo", resume.

Uma vez que o valor é transferido diretamente de carteira digital para carteira digital, não há como reavê-lo.

De acordo com um levantamento da ONG Global Anti-Scam Org, especializada no combate aos golpes de romance, a maioria destas moedas é compradas nas duas maiores plataforma de negociação de cripto, Coinbase e Binance. Procuradas por Tilt, nenhuma das empresas respondeu.

Golpes de Sha Zhu Pan roubaram cerca de US$ 490 milhões em criptomoedas só no ano passado, segundo dados do FBI e da Federal Trade Commission dos Estados Unidos. E as instituições estimam que haja subnotificação dos casos, já que, constrangidas com o prejuízo e a ilusão amorosa, muitas vítimas não procuram ajuda.

Vítimas dos dois lados

Victor só não caiu no golpe por um detalhe: logo na primeira vez, Adele queria que ele investisse mil dólares. Ele desconfiou.

Outros indícios foram surgindo. Adele nunca atendia suas ligações, mas estava sempre online para respondê-lo. No Instagram, suas fotos não tinham quase nenhum comentário.

Quando verificou os seguidores de Adele, veio a prova final. Ela seguia Candice, outra jovem sul-coreana... que tinha suas mesmas fotos, postadas há mais tempo ainda

Ciente que estava sendo fraudado, Victor ainda tentou alertá-la de que suas imagens estavam sendo usadas por criminosos. Não obteve resposta. Em vez disso, foi bombardeado no Instagram por uma enxurrada de mensagens de outros perfis iguais aos de Adele, que tentam enganá-lo até hoje.

Ele escapou do prejuízo financeiro, mas não do emocional.

"O que me deixa mais triste é a falta de remorso. Conversando com as golpistas, quando elas são confrontadas, fica evidente o desprezo pela vida da vítima, por aquilo que ela acumulou ao longo da vida toda."

O que ele não imaginava é que, para a pessoa do outro lado do perfil de Adele, aquilo não é apenas um golpe — ou mesmo um trabalho. É um caso de vida ou morte.

Segundo investigações da Global Anti-Scam Org, muitos golpistas também são vítimas: foram escravizados por uma organização criminosa e precisam extorquir para sobreviver. Entenda a situação:

  • Enganado

    O futuro golpista é atraído para paraísos legais no leste asiático, como o Camboja, por meio de um anúncio de vaga de emprego no exterior

  • Aprisionado

    Ele então é mantido em cativeiro, com outros escravizados, e não pode ir embora até ''pagar os custos'' de ter sido trazido de outro país

  • Isolado

    Celulares, documentos e pertences pessoais são retidos pelos criminosos. Contato com o mundo externo, familiares ou amigos é impossível

  • Torturado

    Assim como em uma empresa, o fraudador escravizado precisa cumprir metas. Se não extorquir o suficiente, sofre tortura e violência física

  • Robotizado

    Ao aplicar o golpe, ele segue um ''roteiro de conversa'', que leva em conta gênero, idade, profissão e momento de vida da vítima. Se não entende algo, usa apps de tradução

  • Vigiado

    Todas as conversas entre ele e a vítima são registradas por câmeras. Em alguns casos, ele não tem intervalos ou sequer licença para poder usar o banheiro

De quem é a culpa?

Escravizados ou não, para muitos desses golpistas o trabalho permanece simples. Se o perfil falso é derrubado, basta criar outro. Segundo a Global Anti-Scam Org, 39% das fraudes de Sha Zhu Pan ocorreram em apps da Meta (como Instagram e Facebook), e 22% nos da Match (como Tinder e OkCupid).

À Tilt, a comunicação do Facebook afirmou que removeu 1,8 bilhão de contas falsas no mundo todo, entre julho e setembro de 2021, segundo seu último Relatório de Transparência.

"Sabemos que ainda há muito o que fazer e estamos comprometidos em melhorar. Continuamos a investir em sistemas automatizados, tecnologia de IA e revisores de conteúdo para ajudar a resolver essas questões", afirma o comunicado.

Na mesma linha, a assessoria do grupo Match enviou uma nota afirmando que "entre outras dicas de segurança, orientamos os nossos membros a não enviarem dinheiro ou informações financeiras, mesmo que a pessoa alegue estar em uma situação de emergência. A transferência bancária é como entregar dinheiro vivo: é praticamente impossível reverter a transação ou rastreá-la."

Para Victor, e todas as outras vítimas, não adianta muito. Hoje, de perfil fechado e olhos bem abertos, segue desconfiando do amor online. Afinal, ele não sabe se do outro lado está alguém que quer começar uma linda história de amor —não com ele, mas com sua carteira.

Topo